"Quando vejo um filme, interesso-me pelo jogo de sentimentos mais do que pelos personagens. Imagino que podemos chegar a um cinema sem personagens psicologicamente definidos, no qual o jogo dos sentimentos circularia. Como em uma pintura contemporânea, o jogo das formas chega a ser mais forte do que a história". Foi assim que o diretor francês Alain Resnais, morto no último domingo, fez do cinema uma arte que não temia sua própria destruição.
Em 1959, Resnais apareceu com seu primeiro longa-metragem, "Hiroshima Mon Amour" ("Hiroshima, Meu Amor"). Em 1961, saia esta que é uma das maiores obras-primas do cinema, "L'Année Dernière à Marienbad" ("O Ano Passado em Marienbad"), com seu roteiro escrito por Alain Robbe-Grillet e fotografia dirigida por Sacha Vitry.
Com ela, Resnais produziu, no cinema, a forma do que a França procurava pensar por meio do setor mais avançado de sua literatura na época (o "nouveau roman", de Grillet, Marguerite Duras, Samuel Beckett e Natalie Sarraute), da psicanálise (Jacques Lacan) e da filosofia (não por acaso, é de Deleuze uma das mais belas páginas sobre Resnais).
Resnais nos forneceu a imagem de um mundo no qual não éramos mais sujeitos, ao menos no sentido tradicional que demos a esse termo. Não nos encarnávamos mais em personagem portadores de narrativas cheias de conflitos psicológicos que pareciam todos descritos em um romance de Balzac. Não habitávamos mais o tempo linear de uma história, mas o tempo simultâneo, no qual passado, presente e futuro entravam continuamente em colapso. Um tempo no interior do qual não se progride, mas no qual se circula.
Tempo no qual a circulação do jogo de afetos produz repetições que nos fazem repetir os mesmos gestos, falar as mesmas palavras para, apenas dessa forma, habitar vários instantes. Essa repetição, que incomoda mais de um espectador de Marienbad, é a procura de movimentos imperceptíveis que anunciariam uma outra percepção.
Este mundo de outros tempos e movimentos, que se apresentava em um grande hotel, que podia também ser um sanatório ou um espaço termal de repouso, era um gesto de adeus às ideias que haviam se colado em nós, moldando nossa forma de ver e filmar. Ideias que produziram nosso cinema.
O mundo desvelado por Resnais continuou a produzir obras-primas nos lugares mais improváveis. Não haveria a fúria antinarrativa de Peter Greenaway ou o tempo libidinal de David Lynch, só para ficar em dois cineastas mais recentes e conhecidos, sem a destruição produzida por Resnais.
Sua condição de antecipador marcou para sempre a arte de nossa época".
VLADIMIR SAFATLE
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