novembro 03, 2008

Como ser querido, "moderno"

"Ele é um querido.Se alguém lhe chamar de fofo, reclame. O elogio dos bobos mudou.
Ainda há pouco era o fofo. Principalmente as mulheres, quando abriam a boca num momento de euforia elogiativa, metade da admiração que lhes saía — pela beleza de um macho ou um artesanato numa feira de Tiradentes — era para expressar satisfação através de um eloqüente "Que fofo!!!!". Assim mesmo, cheio de exclamação para não deixar dúvidas.
O mundo subitamente ficara fofo, um adjetivo que era atirado em todas as direções, não só porque o vocabulário da Humanidade se reduz a um número cada vez mais elementar de palavras, como o fofo combinava com uma certa placidez moderna dos costumes. Todo mundo querendo agradar e ser reconhecido como gente boa, zero de crítica e contestação. Vivemos a civilização do boa-praça, das pessoas que se despedem mandando um beijo no coração.
Semana passada, alguém querendo superar todos os demais em fervor benigno, me mandou um beijo na alma. Fofíssimo.
Você pode ser ladrão, votar nos corruptos de sempre, tudo bem. Deve ter seus problemas, uma falha qualquer na ascendência. Desculpa-se. Foge-se apenas, por vergonhoso, ultrapassado, do rótulo de antipático, baixo astral.
Isso destrói carreira, joga no nicho de maldito, daqueles que não se adaptam às novas sinergias funcionais. É o desagregador, o de gênio difícil. Evita-se. Talento continua sendo um requisito razoável a se buscar num profissional, mas as empresas levam cada vez mais em consideração o quesito do astral. O tal boa praça, o do sorriso franco, do pagode ligeiro. Se o sujeito é mansinho, risonhozinho,interage simpaticozinho e sem crítica com a mediocridade alheia — este é o cara.Contratem-no.
Não vai longe o tempo em que o admirável era a busca do tom crítico, a maneira enviesada, diferente, de se olhar o cotidiano. O avesso do avesso do avesso. Bom — dizia a música do Caetano — era botar os cornos acima da manada e ver o contrário do que as outras vacas e bois estavam mirando. O disco mudou. O fofo agora é ser igual ao que lhe é igual. Não destoar. Fazer parte do coro, não desafinar os contentes. Juntar a voz e dizer bem alto, mas junto com os outros: Sim!! Eu, se estivesse dando um curso de como se comportar moderno, sugeriria que ninguém tentasse observações fora do padrão. Guarde o humor ferino. Concorde. Elogie. Vai ficar claro, como dizem os manuais de gestão afetiva, que você é do bem. O mundo ficou fofo, as cabeças ficaram moles, e o desejo generalizado agora é ser da manada. Ser positivo, construtivo, meio bobinho, mosca morta — ou seja, um fofis!, que é uma das variações fofas da mania de ver o mundo num tom cor-de-rosa. Faça o tipo, e logo alguém lhe colocará na orelha o brinco auditivo de mérito maior. Foférrimo!! Mas como tudo que é fofo demais enjoa logo, as pessoas mudaram a língua. Continuam elogiosas.
As mais críticas ficaram no passado, em 1968, quando o bacana era destruir as prateleiras, livros, louças e vidraças. Ô, gente negativa! O ideal da Humanidade 2008permanece fofo, todos querendo enaltecer ainda mais qualquer um, pois isso sinaliza ser de bom coração, disposto a olhar na mesma direção do seu grupo e ser aceito como um igual. Eu elogio, tu me elogias e eles se elogiam entre si. O resto é a banda dos amargos, gente que desagrega valor e puxa para baixo. Fuja-se deles.
Morto o fofo, por ter sido proclamado em excesso, o maior elogio que se pode receber agora na "civilização do boa-praça" é o "fulano é um querido". Você quer agradar muito, puxar o saco do próximo, de um jeito pós-fofo? Pois, então.
Diga com um sorriso bem derramado: "Fulano é um querido". E sicrana? "Sicrana é outra querida". Ser chamado assim será o reconhecimento público de que você avalia os seus pares na tecla do correto. Pela alma do cidadão e, acima de tudo, o aceita com carinho. O resto é o cinismo, o sarcasmo e outros tipos de sal que não adubam o planeta azulzinho. Derrame afeto, transpire emoção, jogue açúcar em todas as direções — e você, breve, será reconhecido como deve. Um querido. É o ISO 900 que a nova ignorância prega aos que, se cai a bolsa, dizem tudo bem, se ela levanta, tudo bem também. O querido abdicou da voz própria. Fica com o consenso, o tapa nas costas e a palavra de perseverança.
Ele é do bem.
Raul Seixas, a metamorfose ambulante, morreu e junto com ele foi o elogio a quem ameaçava dizer agora o oposto do que disse antes. O querido diz sempre a mesma coisa — que, um minuto depois de proferida, ninguém sabe mais qual foi. Ele é apenas uma presença que não obstará. Ele contemporiza.
Dá um sono muito grande falar com um querido, mas a Humanidade regida pelos antidepressivos acha que é melhor do que a insônia.
Em civilizações passadas, mais contestadoras, era aquele a ser ignorado. Não fedia, não cheirava, não espantava a platéia com uma bala perdida qualquer no meio da discussão.
O querido sorri muito, tem uma capacidade notável de não assustar e de se mostrar sempre a favor. Elogia seu bigode de ontem, mas é afetuoso o suficiente para reconhecer que você também ficou muito bem sem ele. A Humanidade careta saúda o querido como se tomasse um prozac humano.
Ninguém sabe por que time torce, nem ele nunca declarou por que babado se baba todo. Muda de lado conforme manca o pé da mesa. É o homem previsível, o que não se intromete onde não é chamado e quando o faz é para elogiar.
O mundo já paparicou o homem inteligente, a mulher dotada de uma argúcia especial. Eles estão em segundo plano, elogiados ainda, mas sem ponto de exclamação. Como se não fosse mais do que a obrigação ou um bem menor. Um querido, não!!! É força da natureza, alguém que não joga bombas sobre o pensamento alheio e quer deixar bem claro sua vontade de dizer sim. Ele é do bem, dizem seus acólitos fofos.
Eu tenho muito medo dessa gente toda".

Joaquim Ferreira dos Santos
O Globo - de hoje

2 comentários:

Anônimo disse...

Sabe, que li, irritadissimo. Custei a entender a ironia. Mas, como continuo baixinho e irritado, fui até o final.
Mas, fico na dúvida, se o mundo não é deles.
bj

Anônimo disse...

Zelita, que bom que eu não consigo ser 'fofo'! Sou seco demais e, como alguém já disse, 'nada é simples comigo'. Prefiro assim a ser esse 'fofo-rréi besta', ainda mais naquele modelito 'sujeito mansinho, risonhozinho,que interage simpaticozinho e sem crítica com a mediocridade alheia'. Realmente, se é assim, então não sou o cara. Prefiro destoar, prefiro pôr os cornos nos lugares errados, ou seja, 'bem acima da manada', pois não quero ser 'pureta', é para destoar mesmo. Por isso que não gosto de abrir mão dos meus horários marcados, dos meus rituais, das minhas manias: quem topar, topou ... quem não topar, procure um fofo!! Beijões do TL.