outubro 04, 2009

DESPEDIDA EM VENEZA

Despedida em Veneza, de Louis Begley, é um dos que trouxe na minha última 'escapada' e estou lendo neste fim de semana. Veneza, como tudo o mais, não basta! Pensei em comentá-lo, até ler o que disse sobre ele o Cristovão Tezza (FSP - Mais! - 15/10/2000):

"O homem que está para morrer é daqueles temas absolutos da ficção - em certo sentido, podemos dizer que é o próprio objeto da literatura.
Modernamente, quando cada vez menos a chamada vida eterna é uma referência concreta do mundo escrito, a interrogação do vazio da morte ganha um apelo irresistível. E difícil, é claro, tantas são as tentações de sair pela tangente cinematográfica do sentimentalismo, de um lado, ou do pragmatismo alienado fingindo que não temos nada com isso, na outra ponta. Também comparativamente a tarefa é árdua, depois de A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, novela de 1886 que parece ter sido escrita ontem, como a balizar o limite último de uma obra de arte ao tratar do assunto. Se acrescentamos ao tema a paisagem também acachapante de Veneza, o menor dos problemas será a sombra de Morte em Veneza, de Thomas Mann. Com tantos assuntos no mundo, por que escrever logo sobre um homem que resolve morrer em Veneza? Pois foi isso que decidiu fazer o escritor americano Louis Begley, em "Despedida em Veneza" (Mistler's Exit). Além do tema arriscado, chama também a atenção o fato de que Begley é uma espécie de outsider, às avessas, do mundo literário. Sócio de um rico escritório de advocacia em Nova York, a Debevoise & Plimpton, e escritor tardio que começou a ser reconhecido nos seus 60 anos de idade, Begley teria mais semelhança com um personagem de um filme jurídico-policial do que com um escritor. Pelo menos na perspectiva brasileira: um homem rico que escreve sobre ricos, produzindo não roteiros de segunda, mas literatura de primeira. Mais uma razão para ler "Despedida em Veneza": como no Brasil os ricos só são consistentes nas páginas policiais (talvez porque os nossos escritores somos pobres demais para conhecê-los) esse livro nos dá oportunidade de inverter o ponto de vista. Begley nos apresenta um personagem, filho e neto de banqueiros, que transita pelas filiais internacionais de sua agência de publicidade e em cujo rol de culpas não consta o fato de ser rico.
Na primeira cena, nosso herói Mistler descobre que tem poucos meses de vida. Entre se encher de tubos num hospital e "sair à francesa", ele decide pela última hipótese. E resolve fazer uma viagem solitária a Veneza para pensar na vida e preparar, pragmaticamente, os detalhes de sua morte: a herança, o destino de sua firma, o futuro da família, apenas mulher e filho. Nesse início, Begley corteja perigosamente o lugar-comum; em algumas cenas, quase que vemos Anthony Hopkins (digamos, para supor o melhor) levantando-se melancólico à mesa do jantar da amiga Anna, com aquela fachada bem produzida de um filme que simula profundidade e se reduz a nada assim que termina.
Mas é aqui que a imensa superioridade da palavra escrita, nas mãos de Begley, contra todas as probabilidades, transparece. A viagem de Mistler em direção à morte evita todas as tentações sentimentais, e, embora filha do poderoso realismo americano do século XX, cria, com traços sutis e delicados de aquarela, um solo literário de alta qualidade.
Tecnicamente, a narração encontra o tom adequado. O narrador vê o mundo apenas pelos olhos de Mistler, mas ao mesmo tempo não é ele - o que dá ao texto o equilíbrio exato entre a empatia e o distanciamento. Todas as figuras que circulam em torno de Mistler, no passado de sua vida ou no presente sufocante de Veneza, vão se reduzindo a fantasmas, seres incompletos, com os quais a cada minuto transparece a absurda impossibilidade de comunhão. Os temas da vida do personagem - a traição, a amante do pai, a namorada que ele nunca teve, a fotógrafa que invade sua vida e desaparece, o ex-sócio, o sexo, a distância do filho, o sucesso - vão inapelavelmente se fragmentando e se esfarelando diante da proximidade da morte (e da dor física); mas, ao mesmo tempo, são tudo o que Mistler tem. Toda transcendência terá de contar com essa memória, e só com ela: o problema é que Deus não existe, e não há ginástica mental capaz de torná-lO convincente.
Também aqui a intuição técnica se revela: ao recusar as marcas tradicionais de diálogo (aspas ou travessão) e fundir freqüentemente o texto do narrador à fala dos personagens (deixando nítida a fronteira, entretanto, para não distrair o leitor do que realmente interessa), a escrita descobre o seu ritmo intimista, em que a voz alta é apenas a extensão superficial da voz silenciosa que diz quem somos, e em que a memória não se transforma num bloco fechado e monolítico de referências biográficas. Ao contrário, acompanhamos Mistler como ele mesmo se acompanha: à deriva de sua própria vida."

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