julho 25, 2014

Zelo

Jesus é um homem; Cristo, uma ideia. A quem pertence uma ideia? À humanidade, provaria Paulo de Tarso
"Os primeiros capítulos de "Zelota" - do escritor e estudioso de religiões americano-iraniano Reza Aslan - descrevem a Palestina no período em que Jesus veio ao mundo. A multiplicação de seitas entre a população carente, a aceitação dos valores romanos pela elite judaica, a presença ostensiva das legiões no território ocupado e o terror do apocalipse lembram, em tudo, os dias de hoje no Oriente Médio.
Com o avanço das tropas israelenses sobre Gaza, e a Síria embrenhada numa guerra civil sem solução, o paralelo entre a rejeição dos profetas do século 1º à civilização romana e a negação do Islã a se render ao capitalismo global é quase inevitável.
Mas a leitura de "Zelota" fala tanto do conflito entre Ocidente e Oriente naquela estreita faixa do planeta, como também elucida uma outra contenda, em curso aqui, neste sítio que permaneceu Paraíso até 1500 d.C.: a dos direitos sobre a imagem do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro.
Sem revelar nada que não seja conhecido, o autor parte da morte na cruz --punição prevista aos que cometessem crimes contra o Estado-- para separar o Jesus histórico da figura de Cristo. O revolucionário, do pacifista.
Contrário à romanização dos hebreus, Jesus ambicionava estabelecer o Reino de Deus sobre a Terra, prometido a Davi por Javé. Para tanto, seria preciso expurgar abastados e sacerdotes subservientes a Roma e bani-la do solo sagrado. Jesus pregava uma revolução.
Ela viria, três décadas depois da crucificação e com trágicas consequências. Em 66 d.C., grupos radicais conquistaram Jerusalém e queimaram os arquivos contendo a dívida do povo. Farta, Roma enviou o general Tito --mais tarde imperador-- à antiga Canaã e a varreu do mapa.
Do Templo de Jerusalém, só sobrou o Muro das Lamentações.
As imagens dos bombardeios a Gaza, estampadas nos jornais de hoje, bem ilustrariam a passagem histórica.
O massacre, comparável à invasão babilônica, tornou os sobreviventes avessos aos que defendiam o confronto direto com os Césares. Nesse cenário, surgiu Paulo de Tarso. Paulo afasta Jesus da causa judaica, elimina o caráter territorial do Reino de Deus e converte os gentios. Cristo é criação do letrado Paulo.
Jesus é um homem; Cristo, uma ideia. A quem pertence uma ideia? À humanidade, provaria Paulo. Em três séculos, o Império Romano se renderia ao Nazareno.
Em 2010, as famílias dos engenheiros responsáveis pela construção do Cristo Redentor perderam para a Arquidiocese do Rio de Janeiro, na Justiça, o direito sobre a imagem da estátua. O precedente deu à Cúria poderes para coibir o uso indevido, segundo a Igreja, do monumento. Os distribuidores do blockbuster "2012" sofreram processo e os italianos foram impedidos de vesti-lo com a camisa azul da seleção.
Essa semana, a Arquidiocese liberou o episódio dirigido por José Padilha para a película "Rio, Eu te Amo", onde o personagem de Wagner Moura, num sobrevoo de asa-delta, acusa o Senhor cara a cara de virar as costas para os problemas mundanos.
A Mona Lisa resistiu aos bigodes de Duchamp; Rodin, se vivo, teria orgulho da multiplicação de charges do Pensador e os punks se apropriaram da cruz. O veto inibe o ícone. Bem fez a Cúria em liberar.
Tratar o Redentor como posse é medir o Reino de Deus em metros quadrados. O convertido Saulo ensina que a mensagem deve circular livre de dogmas e de acordo com seu tempo.
O poder do Templo de Jerusalém era baseado no fato de ali, e somente ali, no Santo dos Santos, ser possível a comunicação com o Altíssimo. Sua arquitetura era voltada para dentro, com muros altos que separavam os milhares de visitantes em pátios internos, um labirinto que se afunilava até a presença divina.
A exclusividade transformou o santuário num lucrativo mercado de oferendas e corrompeu o clero. É o que denuncia Jesus, pouco antes de promover o quebra-quebra que o levaria à prisão.
A natureza do Cristo da Guanabara é oposta. Plantado do cume do Corcovado, basta olhar para o alto para se dirigir a Ele.
Entendo que a Cúria zele pelo Nosso Senhor. Os engenheiros também têm razões para reivindicar seu quinhão, respeitando, é claro, os 60 anos do falecimento dos autores, todos mortais, não sujeitos à ressuscitação.
Mas o imaginário a Deus pertence.

FERNANDA TORRES

abril 30, 2014

As regras da casa


"Traduzida de sua origem grega, a economia fica assim muito mais fácil de entender. Ecologia é o estudo da casa, do ambiente. E anomia é um estado de caos, quando não há regras e vale tudo.
Economistas que passaram por meu consultório entendiam muito de ativos e passivos, custos fixos e variáveis, investimentos (com bons e maus retornos, arriscados ou seguros) e gastos, e de outros pertences dessa curiosa feijoada.
Mas, para minha surpresa, não se davam conta de que o conceito de economia, quase com os mesmos pertences, também se aplica à vida psíquica, e se mostravam gestores desastrados de seu capital mental.
Pareciam fazer investimentos de péssimo retorno (como na gratidão, por exemplo). Ignoravam o custo de um favor pedido. Ou o perigo de um momento de ternura com o inimigo. Carregavam passivos inexplicáveis, sofrendo com eles.
Para quem não é do ramo, ativos são seus bens, aquilo que você possui como patrimônio. Passivo é aquilo que você deve, o peso que você carrega.
Aplicado à vida mental, seu ânimo, sua capacidade de amar, sua liberdade, sua intimidade, sua inteligência, seu alto astral, sua generosidade de espírito, seu gosto pela vida, sua libido, sua ética e sua estética, seu desfrutar das artes em geral, sua habilidade profissional, o gostar do que se faz, sua habilidade em ser pai/mãe, sua afetividade, o fazer amigos, de se comunicar bem --essas coisas todas são parte de seu patrimônio mental, seus ativos psíquicos, disponíveis para investimentos.
É bem verdade que ser coitadinho e lucrar com isso (os "coitadistas") virou um ativo político, mas isso já faz parte das doenças psíquicas chamadas de "perversões".
Por outro lado, o sentimento de culpa, de obrigações alheias ao seu gosto, o sentir-se preso ao passado, as inibições, a vergonha do próprio desejo, a compulsão ao sofrimento, o mau humor, o destempero, o desespero, as neuroses e perversões, os vícios, qualquer coisa/pessoa que nos aprisiona, esses fazem parte do passivo, daquilo que se deve.
Uma síntese, grosseira, mas bem-humorada da psicanálise, diz: "Deveu? F%#&u!"
De fato, o que parece má gestão da economia psíquica, não o é, há sempre uma razão, oculta e enigmática, sim, mas há, cabendo ao psicanalista se debruçar sobre a história do paciente para entender que diabo de passivo estranho ele está penando para pagar.
O sujeito parece estar cumprindo pena de crimes horríveis. Por quê? Aí, o psicanalista precisa ser a um só tempo economista e advogado de defesa.
Um, pega o livro-caixa e faz uma auditoria. O outro quer ver os autos do processo, para saber se o crime de fato existiu, se o tribunal não foi injusto, se a pena prescreveu.
Exemplo: aquele que parece se sabotar para não ser nunca feliz.
Sem que a gente saiba, ele está pagando uma "dívida" por ter nascido inteligente, se dado bem e saído do subúrbio, "esqueceu dos pobres, né?"
Enfim, a psicanálise, aplicada à economia, quer apostar na saúde já existente, acertar as contas do passivo e deixar os ativos líquidos para investimento no desejado."

FRANCISCO DAUDT

Alugando um apartamento em 1962


"Você não tem ideia do que era o Brasil em 1962. Andávamos de bonde, o Rio - então uma "cidade maravilhosa" - era mais importante do que São Paulo; Niterói, onde eu morava e insisto em morar, tinha um restaurante chamado Petit Paris onde Sergio Mendes tocava piano; só rico andava de avião e você ia trabalhar de paletó e gravata. A praia de Icaraí tinha águas transparentes e, na barca para o Rio, víamos golfinhos. A televisão ainda não importava, por isso "íamos ao cinema", escolhendo ver filmes franceses, americanos, italianos, russos ou alemães. Tomávamos chopes, pois não havia essa frescura de vinho de hoje. As ruas eram vazias de veículos, comprávamos linhas de telefone e pedia-se um 
interurbano quando se queria falar para o Rio...
Todo intelectual era "conscientizado" e "de esquerda" de modo que a "politização" se tornou uma chatice e uma religião que, em poucos minutos, deflagrava discussões amargas porque quem não queria as "reformas de base" e sonhava em revolver as "estruturas arcaicas" do Brasil, era xingado de "reacionário" e "alienado".
Eu era recém-casado com uma moça linda, tinha um filhinho e estava alugando um apartamento. Fomos falar com o proprietário, um português abastado que vivia de alugar imóveis.
- Muito prazer. Quanto o senhor quer de aluguel?
- Qual é a sua profissão? Respondeu o dono.
- Sou professor e pesquisador do Museu Nacional, retruquei orgulhoso como todo pobre.
- Então você não vai poder me pagar! O aluguel é alto para um professor.
- Passar bem! Despedi-me injuriado.
A experiência confirmava minhas convicções. Eu havia falado com um explorador do povo. Naquele dia, vituperei contra o capitalismo e, apaixonado pelo conceito de "confisco", sonhei com a revolução que iria mudar o País, dando apartamentos, casas e sítios para os despossuídos. Apaixonei-me pela palavra "confisco" muito usada pelos líderes políticos daquele momento. Um deles, poeta conhecido e admirado, disse para mim num momento de regozijo revolucionário: "Agora, só falta instalar os sovietes".
Discuti muito com meu pai (que havia abandonado a Escola Militar) o qual, não cansou de me advertir: um dia, os militares tomam conta...
Sorri de sua "falsa consciência".
No domingo seguinte, saí acintosamente de uma missa no meio de um sermão de um padre reacionário. Redefini minha relação com a religião e aderi ao "agnosticismo" de um querido professor. Era, agora, um materialista devidamente antenado com o meu tempo de conscientização.
Esse ato revolucionário, único de minha hoje longa vida, me custou uma briga sartriana com minha mulher. O quarto foi testemunha de uma discussão filosófica, deixando de ser o palco do amor. Eu assinalava que não era um "pequeno-burguês"; ela pensava no leite do nosso filho.
Na margem esquerda do Rio Tocantins, perto da então cidade de Itupiranga, no Pará, eu esperava um barco. Ali, vivia numa palhoça miserável um coletor de castanha. Resolvi conscientizá-lo e sugeri que eles precisavam fundar um sindicato. O homem me olhou assustado e perguntou: o que é um sindicato.
Eu, politizado, não sabia.
Em setembro de 1963, embarquei para os Estados Unidos com uma bolsa da Fulbright Comission. Ficaria um ano acadêmico em Harvard, estudando antropologia com um mentor inglês, ali radicado. Tornei-me amigo de uns poucos esquerdistas, que estudavam em Harvard e no MIT. Lembro ao leitor que, àquela época, ouvíamos notícias pelo rádio e lendo jornais, que chegavam com semanas de atraso.
No dia 2 ou 3 de abril, um amigo me telefonou e informou que a "nossa revolução cubana havia começado". Imediatamente, comuniquei o fato a um vizinho, estudante de Física. Uns 20 minutos depois, o mesmo amigo me comunicou que o Brasil sofria um "golpe militar". Pensei no meu pai.
Deprimido, perguntei-me de onde vinha o poder dos golpistas se nós somente falávamos em operários, camponeses, estudantes e no povo oprimido e simpático à causa revolucionária? Como não havia resistência? Onde estava o dispositivo militar? Havia algo errado na minha teoria. Ali nasceu o meu interesse no carnaval e no papel dos elos pessoais no Brasil.
Voltei em setembro de 64 para novamente voltar a Harvard em 67, onde fiquei até 70.
De 70 a 2014, muita água correu debaixo da ponte e hoje temos a esquerda no poder. Estão aí o corporativismo e o aparelhamento. Os elos pessoais que não ensejam a coragem de dizer não aos amigos, falam alto e valem milhões de dólares. Talvez eles fossem as tais "estruturas arcaicas" que parte de minha geração queria mudar".

Roberto Damatta

abril 27, 2014

Conspirando com Gabo


"Nem só de literatura são feitas as lembranças de Gabo, agora que o seu corpo já não está entre nós. Acredito que nos sete anos que passei, desde 1973, conspirando com ele, graças ao exílio e a Pinochet, juntando-me a ele, almoçando em sua casa em Barcelona e jantando no Pedregal de San Ángel, sentados nos cafés de Paris e de Roma e até, acho, certa vez, em Estocolmo, sempre conspirando, conjurando, tramando, sempre em busca da maneira mais rápida e imaginativa para acabarmos com as ditaduras que assolavam nossa América Latina.
Que mais poderia desejar um jovem escritor latino-americano, como eu era naquela época, senão passar horas e horas na companhia do autor de Cem Anos de Solidão? Era possível pedir algo mais, em meio àquele caudal de encontros, Gabo abrindo suas agendas de contatos, Gabo atendendo ao telefone nas madrugadas e Gabo entrevistando figuras da resistência, sempre disposto a intervir para salvar uma vida, transpor uma porta, escrever um artigo? Era possível pedir mais?
Eu não tinha sequer me colocado a questão quando o destino me ofereceu, em agosto de 1980, a oportunidade de compartilhar com Gabo e vários outros escritores uma semana inteira em Cocoyoc como jurados de um concurso literário sobre militarismo na América Latina. Digo que o destino me proporcionou essa graça, porque é uma delícia narrar a própria vida com uma frase típica do próprio García Márquez, mas a verdade é que o convite não veio do destino e sim de Julio Scherer, o lendário diretor da revistaProceso. Assim que recebi o convite, tive consciência do que me fizera falta ao longo desses sete anos anteriores, com a revelação de que, durante tantas sessões insubstituíveis e amáveis com Gabo, estimulados pela urgência da política, quase nunca havíamos tido tempo de falar sobre literatura, daquelas obras que, em tempos mais normais, teriam sido tema cotidiano e incessante de conversação.
E aconteceu que a semana que passamos nesse balneário mexicano foi uma interminável tertúlia estética. O tema, para mal dos nossos pecados, era o militarismo na nossa triste América e não o modo como Chekov fazia fluir um conto ou a terna violência com a qual Cervantes tratava e maltratava seus personagens. Mas a Dama do Cachorrinho, o Jardim das Cerejeiras , o Quixote e uma quantidade de outros livros que nos rondavam iam se infiltrando nas conversas que acompanhavam as comilanças e as deliberações. Como não falar de Kafka e de Dante quando discutíamos romances ou as fronteiras imprecisas entre ficção e testemunho, fantasia e jornalismo, quando nos perguntávamos se cabia em nossa seleção um compêndio de fotografias? E foi nessa semana que tive inúmeras ocasiões para discutir Sófocles com Gabo, ou La Vorágine, ou as vicissitudes do thriller. Mas, ele e eu não estávamos sozinhos, e às vezes me bastava simplesmente presenciar às escaramuças de Gabo com Julio Cortázar, outro dos jurados, ou a tenacidade e finura com que ele defendia um texto diante de Pablo González ou René Zavaleta ou Theotonio dos Santos; bastava-me isso para sentir que, vagamente, ia me aproximando de García Márquez de uma maneira nova.
O que trouxe comigo, isto sim, dessa semana foi uma lembrança precisa e imorredoura.
Na primeira noite em que chegamos, enquanto bebericávamos do lado de fora de seu chalé, observei que Gabo segurava debaixo do braço um manuscrito, e não o soltava nem sequer para beber ou para servir-se de um tira-gosto; por nada neste mundo ele queria pôr essas folhas sobre a mesa. Acho que esperava que eu perguntasse do que se tratava, que misterioso e fino objeto ocultava. E não o decepcionei, perguntei. Ele sorriu de maneira quase provocadora e certamente maliciosa e me deixou espiar o título: CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA. Quis sequestrar o romance imediatamente, esquecer os vários volumes que esperavam meu veredito e benevolência em meu quarto, mas Gabo não permitiu. "As duas mulheres mais importantes da minha vida", sentenciou, referindo-se a Mercedes, sua esposa, e a Carmen Balcells, sua agente, "declararam que se eu deixar este livro sair das minhas mãos antes de ser publicado vão me matar." Era um exagero. Julio Scherer, que ouvia com uma expressão sagaz e um tanto maliciosa nosso diálogo sentado em sua cadeira embaixo dos coqueiros, admitiu que já havia lido a crônica na noite anterior. Mas isso não me dava nenhum direito, tampouco esperança, pois nunca se soube que ninguém decente pudesse negar algo a Scherer quando ele pedia com seu habitual entusiasmo e intensidade. De maneira que decidi não insistir.
Então, para aliviar minha frustração, Gabo me presenteou com uma revelação. Contou que acabara de receber, acrescentando que foi depois que terminou de escrever o romance, uma cópia da autópsia do cadáver de Cayetano Gentile, um amigo seu que em 1951 foi assassinado a facadas e cuja desamparada sombra e destino exigiam havia décadas um depoimento intenso e inesquecível.
Gabo se inclinou para a frente e baixou a voz, como se fosse me confidenciar um segredo extraordinário.
"O único ferimento mortal", disse García Márquez, "encontrado no cadáver foi nas costas, justamente na terceira vértebra lombar, e lhe perfurou o rim. E, sabe de uma coisa? Foi ali, exatamente nesse ponto, que eu, desconhecendo em absoluto esse detalhe, imaginei a lesão do meu personagem Santiago Nasar; pus uma chaga na minha ficção que imitou, recordou e antecipou a exatidão do real."
Os olhos de Gabo brilhavam como os de uma criança maravilhada, como devem ter brilhado os olhos de Bernal Díaz del Castillo quando, não muito distante do local em que eu conversava com meu amigo, viu a capital dos astecas e declarou que o lembrava das cidades fictícias de Amadis de Gaula. E meus olhos também brilhavam por essa viagem instantânea até as origens, pela vertigem que experimentava ao poder aproximar-me da maneira como García Márquez criava suas obras. Para ele, como para nossa América, tudo era ao mesmo tempo verídico e fabuloso, história e invenção, dor e mito.
Então, nossos olhos brilharam simultaneamente, os meus e os dele, por compartilharmos da alegria de quem descobre um rio imenso no instante obscuro em que nasce da fonte mais remota de uma montanha. Porque o arcanjo Gabriel me presenteava com a certeza de que, depois de tudo, talvez não estivéssemos tão sós, se podíamos imaginar a praga da nossa violência e a praga da nossa desventura de uma maneira tão minuciosa, excessiva e perfeita.
Uma certeza que continua e continuará nos presenteando uma América agora de luto.
Ariel DorfmanTRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

abril 21, 2014

Síndrome de Peter Pan


"Publicado há cerca de três décadas, o livro "Síndrome de Peter Pan" mostrava um novo padrão de comportamento social para a época. Seu autor, dr. Dan Kiley, simplificou algumas ideias de Jung, usava o personagem de ficção como parâmetro de um grupo cada vez maior de adultos que não abriam mão de seus privilégios adolescentes.
Peter Pan, para quem não leu o livro nem se lembra da versão da Disney, é um menino que se recusa a crescer. Dotado de poderes mágicos e de uma fadinha de estimação, vivia com "garotos perdidos" na Terra do Nunca, um eterno playground.
A tal síndrome descrita pelo dr. Kiley não era exatamente uma doença, mas um desvio de comportamento de quem cresceu em ambiente de superproteção e que, confrontado com a dura realidade das escolhas cotidianas, preferia se refugiar em ambiente conhecido. Como a criança que ao fechar os olhos se julga invisível, esses adultos entravam em uma espécie de negação primitiva, criando uma bolha em torno de si.
Entre as características dos "Peter Pans" estariam relutância em assumir responsabilidades, cuidado excessivo com a aparência, envolvimento compulsivo em atividades lúdicas e baixa autoconfiança.
Morto há dez anos, Dr. Kiley não viveu o suficiente para ver a condição que definiu transformada em pandemia. Seria interessante ouvir sua opinião em meio a tantas teorias rasas propostas por analistas de tendências, publicitários e antropólogos de aluguel em geral.
Quaisquer que sejam as origens de tanta imaturidade --popular nas piadas machistas dos programas de "humor", no egoísmo de empresários e políticos, no narcisismo de atores e web-celebridades, na futilidade das redes sociais e na alienação geral de praticamente todo mundo--, um fator é inegável: a natureza das mídias digitais, se não causa, certamente estimula esse tipo de comportamento.
"Selfies", check-ins, "badges", Tinder, buscas pelo próprio nome e competições por "curtidas", amigos e seguidores não teriam nada de errado se fossem produtos de nicho, encarregados de manifestar uma fase de exceção marcada pela insegurança. Quando se transformam em regra é natural que demandem análise dos meios por que circulam.
Boa parte das tecnologias de consumo tem a cara de seus donos, a maioria homem, jovem e rico, se beneficiando de uma cultura que fetichiza a juventude. Há pouquíssimos apps para os menos favorecidos e, incrivelmente, para qualquer mulher que não esteja obcecada por sexo, compras, decoração ou moda.
Boas ideias, mesmo quando surgem, acabam rechaçadas por uma panelinha de investidores que considera mulheres (50% do planeta) e pobres (99%) mercados de nicho.
O resultado dessa triste miopia se reflete no estímulo a um comportamento machista, ingênuo e misógino da "cultura geek". Pessoas levemente deprimidas, insatisfeitas e misantropas, que fazem da tecnologia o tema central de suas vidas e buscam sempre a última novidade podem ser bons consumidores, mas não são seres humanos exemplares.
A tecnologia, que sob tantos aspectos é um dos setores mais avançados da sociedade, guarda em si uma infantilidade patológica. Enquanto não nos livrarmos dela, o futuro não será tão bonito como prometem romances adolescentes." 

LULI RADFAHRER

abril 17, 2014

Trinta anos de bode : GABO versus Mario


"A primeira notícia sobre um possível degelo nas relações dos dois consagrados mestres da moderna ficção em qualquer língua, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, foi publicada no início de janeiro no prestigioso jornal The Guardian, no Reino Unido, oriunda (possivelmente) do laptop do correspondente Giles Tremlett, em Madri. A reportagem se referia sobretudo à publicação, em 2007, de uma edição especial comemorativa do 40º aniversário de publicação do consagrado romance Cem Anos de Solidão, de autoria do colombiano García Márquez, tido como uma das obras-primas do século XX e leitura obrigatória para todos interessados em arte, cultura e o realismo mágico, do qual, conforme sabemos, o cubano Alejo Carpentier é renomado precursor.

O legítimo homme du monde peruano Mario Vargas Llosa, autor também do notável A festa do bode, publicado em 2000, outro volume seminal de nos jours, e quaisquer outros jours também, embora distante do realismo mágico, mas chegado à nossa cultura (seu livro sobre Canudos, A Guerra do Fim do Mundo, de 1981, é um clássico, embora poucos tenham sabido ler e entender, tal como se deu da mesma forma, o que muito explica, com o evento histórico), está encarregado da apresentação, apesar de trinta anos de gélida guerra entre os dois mestres do idioma de Cervantes - e de Shakespeare e de Molière e de Gil Vicente e outros tantos, já que passaram por traduções hoje tidas como exemplares, inclusive em nosso Brasil.

Argumenta-se, nos meios literários, que esta introdução nada mais é do que uma adaptação de um estudo crítico assinado pelo talentoso peruano, em 1971, e que levou o título de A História de um Deicídio. Vargas Llosa vem se recusando à republicação do tomo desde o histórico desentendimento, ou rixa e ainda rusga, se preferirem, entre os dois magníficos ficcionistas, num pequeno cinema mexicano, em 1976.

Justiça seja feita a um e outro: nunca tocaram nos detalhes daquilo que, ao que parece, começou com palavrório, tão comum naqueles que vivem da palavra escrita e falada, mas que chegou às vias - e como! - de fato. Tamanha discrição só serviu para alimentar a curiosidade natural, e malsã também, sejamos honestos por uma vez na vida, daqueles que se interessam pela literatura da América hispânica e ainda por suas querelas, num nível mais baixo, mas nem por isso menos humano, all too human conforme sentenciou o Bardo Imortal. O fato de que na política os dois aspirantes ao Parnaso assumam posições radicalmente - mas radicalmente mesmo - diferentes sempre constou da equação que os mais corajosos tentaram explicitar e resolver.

Detalhes?

García Márquez já publicou o primeiro volume de suas memórias. Consta, segundo relatos vindos daqueles que fazem parte de sua roda, igreja e catedral (onde se deve conversar, segundo Vargas Llosa), que Gabo, como é chamado na intimidade de seu lar e de outros lares também, quer a todo custo evitar entrar de novo "naquele cineminha mexicano" de 1976, e que ainda está lá para, se quisesse, contar a história, que nós aqui, mediante diversas viagens e entrevistas (trabalhamos mais que Truman Capote em A Sangue Frio, embora munidos de gravador digital mais que portátil), conseguimos reunir e deixar a última palavra com a pessoa mais importante dessa discórdia toda: você, leitor!

Agora, leia, digira os dados e chegue à sua própria conclusão, que é a única que conta. Obra mais aberta não há nem poderá haver. Depois, nos diga - e este é o teste - quem você acha que está com a razão: Gabo ou Mario?

O local

Trata-se de um pequeno cinema, de seus duzentos lugares, que já conheceu melhores dias. Hoje em dia, limita-se a passar cópias desgastadas de velhos filmes mexicanos e cubanos maltratados pelo tempo e por curadores descuidados. Presentes ídolos que não estão mais entre nós, e dos quais poucos jovens ouviram falar: Maria Antonieta Pons, Ninon Sevilla, Tito Junco. Sempre em números especiais, Pedro Vargas e Toña la Negra. Agustín Lara, o grande Agustín, também comparece! Vez por outra, quase que por distração, levam algo com Pedro Armendáriz e Maria Félix, dirigidos por Emílio Fernandez (lembram-se de The Wild Bunch, que no Brasil chamou Meu ódio será tua herança?) e fotografados pelo genial, assim o dizem, Gabriel Figueroa.

Muitos anos antes, em 1976, já que estamos sendo precisos com evento beirando o histórico, diante de um sol pastoso de julho, Gabo e Mario, depois de tomar umas tequillas e chupar umas goiabinhas, ambos apreciadores ferrenhos da Sétima Arte, passaram diante do Cine Cortés, ali mesmo na Calle de los Conquistadores, naquele bairro afastado de Ciudad de Mejico, onde tinham a certeza de não serem reconhecidos por seus admiradores. Sim, meus amigos, vivíamos numa época em que não só as modelos anoréxicas e os astros parrudos de Hollywood faziam sucesso nas paragens que os tolos gostam de chamar de "O Terceiro Mundo". Gabo e Mario eram o orgulho do Continente que dera ao mundo Bolívar e O'Higgins, para citar apenas dois ídolos e heróis. A pena (o computador ainda não tinha sido inventado) também era uma espada e a espada... uma pena? Não creio. Alegres e extrovertidos, os dois amigos notaram que estavam exibindo Casablanca, produção da Warner de 1942 inexplicavelmente tornada obra-prima pelo medíocre, mas prolífero, Michael Curtiz, em condições normais um diretor rotineiro, que, não obstante, nos legou inegáveis chef-d'oeuvres, tais como The Sea Hawk, 1940, e The Adventures of Robin Hood, feito dois anos antes. Um mistério que ambos, Gabo e Mario, não sabiam - talvez ainda não saibam! - explicar. Pois entraram os dois e - atenção, muita atenção - se sentaram no meio da quinta fila.

No que passamos então a nossos depoimentos exclusivos.

Depoimento de Jesús Maria Iberrurtí, ex-lanterninha, 81 anos, cego de um olho.

"Sim, senhor. Lembro-me como se fosse hoje. Os dois cavalheiros, quarentões ambos, não paravam de fumar, e eram só charutos finos, o que é proibido, pelas regras do estabelecimento, mas fazíamos vista grossa diante de clientes mais finos. Eu já vira o tal do filme umas vinte vezes e, desculpe-me, eu o odiava. Baixo sentimentalismo, canções estrangeiras, péssima dublagem em espanhol, atuações que não poderiam beijar os pés de uma Sarita Montiel ou Luis Mariano. Entraram com o filme já começado e uns vinte minutos depois estavam aos socos e pontapés. Com o auxílio do guarda (Pablo de Tal. Foi impossível localizá-lo. Consta que teria morrido afogado, tentando atravessar a nado a fronteira com os Estados Unidos.), que fui catar no café Los Libertadores, conseguimos expulsá-los. Nunca ouvi tanto palavrão na minha vida. Nem parece que eram homens de berço. Não sei qual era o pomo da discórdia, mas um deles, o bigodudo, mais baixo e entroncado, não cessava de se referir à conduta sexual das senhoras, tanto a esposa quanto a progenitora do outro, o mais alto e de terno branco, camisa listrada azul, mas sem gravata. Essas pessoas dificultavam muito meu trabalho."

Depoimento de Mérida Pinión, academicista, 77 anos.

"Parecia um sonho! Dois dos maiores escritores do planeta brigando na minha frente. Nem consegui prestar atenção no filme do Cary Grant. Tenho a certeza que foi por minha causa. Mario já se voltara duas vezes (só mais tarde, muito mais tarde, ficamos íntimos, e como! Qui, qui, qui!), eu estava três filas atrás dos dois, e perguntara se a fumaça estava incomodando. Fiz-me de desentendida, que não sou de falar ou ir com qualquer um, mesmo que se chame Vargas Llosa ou García Márquez. Como resposta, ouvi um palavrão. Gabor, hoje eu sei que foi Gabor, tomou-lhe satisfação e, não a tendo, deu-lhe uma - com o perdão da má palavra - porrada na cara. Daí saí correndo e mais não vi. Mais tarde, em casa de amiga, escrevi um conto a respeito. Foi incrível! Publicaram no Brasil dois meses depois."

Depoimento de um coronel ao qual ninguém escreve, 107 anos presumíveis.

"Hein? O quê? Fale mais alto. Minha memória já não é mais o que era. A crise de Suez, disse você? Pois não. Foi lá pelos idos de 1962 e o presidente americano, Harvey de Tal, se não me engano, quase bombardeia de forma atômica Costa Rica. Ou Honduras. Uma dessas calouras fuleiras que insistem em nos imitar. Era um tempo irado, cheio de ventos, mas eu vivia razoavelmente com os cobres de minha pensão. Dava para servir um café às visitas, coisa que hoje, como está vendo, me é difícil. Naquela época era muito perigoso falar em política, principalmente nas alfaiatarias. Não me pergunte por quê. Somos estranhos como as éguas que, por motivo algum, relincham no meio da noite. Quando sair sua revistinha, promete me mandar um exemplar?"

Depoimento de Juan ******, 68 anos, autor não-publicado.

"Prefiro o anonimato. Prefiro também a prosa de Carlos Fuentes à dos dois paspalhões que brigavam por uma guimba de charuto. Em Fuentes, uma sentença começa com a simplicidade de um ovo. Depois, bica sua existência até adquirir asas, parte meio sem jeito para o vôo, encontra sua corrente de ar, onde respira e navega, forma seu verbo como se o tivesse catado em vegetação próxima, junta-o a advérbios e adjetivos boiando em poças d'água da redondeza, esquiva-se das armas furtivas dos caçadores, passa com desdém diante das fuças dos cães que o buscam, mergulha numa lagoa, sai com um sujeito no bico e um predicado preciso numa das garras, para finalmente pousar e - surpresa - ver-se no caso acusativo. Escrever é isso. É Fuentes. Colombianos correm do pau e se aviltam diante do primeiro socialismo que lhe fizer cócegas no ego. Peruano? Só rindo. Por que acha que a expressão "não há cu de peruano que agüente" surgiu? Não há de ter sido por nada. Brigaram os beldroegas por analfabetismo e desmesurada ambição política. Vargas Llosa presidente do Peru! Só rindo, só rindo."

Depoimento de 14 putas tristes, entre 70 e 80 anos, várias esquinas.

"Nós sempre vemos juntas Casablanca quando passam. Nesse dia a que o senhor se refere éramos 25. Todas pagamos entrada, sim senhor, apesar do gerente ter feito proposta indecorosa, ainda que interessante. Trabalho é trabalho, arte é arte. Choramos então, choramos hoje, nós que sobramos. Quando el negro Sam cantava aquela canção, o senhor sabe qual é, nesse pedaço não dublavam. Nos derretíamos feito manteiga. Hoje igualzinho. Esses dois marmanjos de que o senhor fala estavam rindo na hora que el Umfrey pede para ele tocar a música para ele. Nós reclamamos em alto e bom som. Apesar de parecerem gente fina, nos responderam com palavras cabeludas, expressões de baixo calão. Erêndira, que era da pá virada e vivia com o pito aceso - tinha uns olhos azuis que só vendo! -, partiu para cima dos dois e, se o baleiro não separasse, o mais magrinho teria se machucado, está sabendo? O mais baixinho e forte estava com o pau para fora. Parecia um taco de beisebol: grande, grosso, uma loucura! Esse comigo não teria vez, por dinheiro algum. Não quero falar mal de ninguém, que isso foi há muito tempo, mas eu gostaria de saber o que é que os dois estavam fazendo naquela hora da tarde num cinema vagabundo. Me explica isso?, o senhor que me parece pessoa de instrução. Essa vida tem cada uma. Durma-se com um barulho desses. Ou não se durma. O senhor sabe onde eu quero chegar, não sabe?"

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E aí está, leitor amigo. Agora você está de posse dos dados que conseguimos, num louvável esforço de reportagem, obter. (Sorry, o baleiro também sumiu, como se a terra o tivesse tragado.) Não foi mole, como diria uma dessas senhoras da última entrevista. Salientamos que todo esse texto é uma seleção de longos depoimentos, muitos deles sofridos, realizados nas mais precárias das condições. A Cidade do México lembra o que vai ser, mais uns aninhos, o Rio de Janeiro. Ou São Paulo. Dizem. Forme agora sua opinião. Escreva para os escribas em questão. Blogueie, se for essa a sua. Veja de novo Casablanca, se achar que vale a pena. O que não pode, mas não pode mesmo, é ficar aí feito um idiota só lendo, lendo e lendo. Vá até a esquina, dê um passeio ou ainda... convide um amigão, desses do peito, para ir com você, de tarde, a um cineminha, depois de tomar umas e outras. Veja, por exemplo... Não. O programa eu deixo com você. Digo, vocês".

Ivan Lessa

Nota: Gabo faleceu hoje. link

abril 12, 2014

Garantia de ridículo


"Em dezembro de 1972, o Brasil sob Médici estava proibido de assistir a filmes como "Laranja Mecânica", de Stanley Kubrick, e "Último Tango em Paris", de Bernardo Bertolucci, recém-lançados em Londres e Paris. Mas todos sabiam da existência deles. Naquele fim de ano, redator da "Manchete", demos capa e seis páginas sobre "Último Tango" --com Marlon Brando e Maria Schneider nus em cena-- e outras tantas sobre "Laranja Mecânica".
Em janeiro de 1973, fui trabalhar em Portugal. Salazar acabara de morrer, mas seus sucessores continuavam tocando a ditadura mais moralista da Europa. Sob a qual os dois filmes estavam não apenas proibidos, como a imprensa portuguesa não podia nem mencioná-los, muito menos dizer que estavam censurados e que havia censura no país. A asfixia era completa. Curiosamente, todas as publicações tinham de exibir um quadrinho no rodapé, onde se lia "Visado pela Censura".
No dia 25 de abril de 1974, a "Revolução dos Cravos" derrubou a ditadura, e uma das grandes alegrias daquela manhã foi ter em mãos um exemplar do "República", o pequeno e bravo tabloide vespertino dirigido pelo socialista Raul Rêgo. Os matutinos, como o "Diário de Notícias" e "O Século", tinham saído com o noticiário de véspera. Mas o "República" já trazia manchetes sobre a revolução e, no pé da primeira página, o quadrinho: "Este jornal NÃO FOI visado pela Censura".
Dias depois, "Laranja Mecânica" e "Último Tango" foram liberados em Lisboa. E outros filmes, que nem se sabia que estavam engavetados, também logo chegaram às telas. Um deles, "Irma La Douce", de Billy Wilder, com Shirley MacLaine e Jack Lemmon, estava proibido desde 1963 por ser uma comédia sobre a prostituição.
Os censores são incapazes de imaginar o ridículo que o futuro inevitavelmente lhes reserva. Esta é a nossa única vingança".

RUY CASTRO

abril 08, 2014

Tudo é vaidade

Razão para o desinteresse nos e-books está no fato de que livros, para a maioria, são objetos de decoração
"Qual a pergunta mais idiota que é possível ouvir quando temos uma biblioteca generosa? Exato, leitor: "Você já leu tudo isso?"
Engolimos em seco. Respiramos fundo. E depois explicamos, pela décima, centésima, milésima vez que uma biblioteca não é uma coleção de livros lidos. As bibliotecas são feitas de livros que lemos no passado, que consultamos no presente e que um dia, talvez, leremos no futuro. Ou que alguém lerá por nós.
Mas existe uma situação mais constrangedora no mundo das bibliotecas: quando descobrimos que uma parte delas nem sequer são constituídas por livros.
Aconteceu uma noite: fui convidado para um jantar em casa de um conhecido literato português. E, deambulando pela casa, encontrei uma estante com livros.
Ou, pelo menos, eu pensava que eram livros. Ao remover um deles, reparei que a coleção era mero enfeite, feito de lombadas e nada mais. O meu anfitrião presenciou o funesto momento. Ninguém disse palavra. Nunca mais fui convidado para jantar algum.
Ficou a lição: a posse dos livros começa por ser vaidade. Só residualmente é uma questão intelectual.
E é exatamente por isso que nunca comprei a febre triunfal dos e-books. Sim, tenho um bicho desses: um Kindle rudimentar, onde recebo jornais, revistas e os livros que desejo ler de imediato com uma ganância que arruína qualquer possibilidade de enriquecimento pessoal.
Mas todas as notícias apontam para o mesmo cenário: o negócio dos e-books brochou em 2013 e é provável que não recupere mais. A Barnes & Noble não está contente com o seu Nook e há rumores de que tenciona desistir do negócio. A Sony não tem dúvidas: desistiu mesmo. E até o Kindle já conheceu melhores dias. Como explicar o naufrágio?
Sociólogos diversos falam na saturação do mundo digital: a novidade de ontem virou rotina hoje e está morta amanhã. Outros, mais românticos, lembram que o livro tradicional não tem concorrência no "plano dos afetos" (grotesca expressão): quando o objeto é em papel, podemos tocá-lo, cheirá-lo. Eventualmente comê-lo.
E a seita dos economistas reduz tudo a meras contabilidades: segundo o "New York Times", os e-books levaram a uma queda no preço dos livros tradicionais (70% na Amazon, em alguns casos), o que reconciliou os leitores com o objeto físico.
É possível que tudo isso tenha dado seu contributo. Mas a razão mais funda para o desinteresse nos e-books está na vaidade humana: os livros, para a maioria, são objetos decorativos de afirmação pessoal e social.
Um Kindle pode armazenar milhares de obras que obtemos instantaneamente (e, com certos títulos clássicos, gratuitamente). Mas serão sempre milhares de obras escondidas no interior de um minúsculo aparelho --e não exibidas com orgulho nas estantes da sala, para impressionar as visitas.
No Kindle, é possível ler e apenas ler. Não é possível mostrar que se lê --uma diferença fundamental. Ora, sem essa dimensão fálica de espetáculo público, os e-books estariam sempre condenados.
Ou, então, condenados a servirem uma ilustre minoria para quem o livro, antes de ser objeto de estatuto social, é sobretudo a fonte mais preciosa que existe de conhecimento e lazer. O problema é que uma minoria, logicamente, não justifica um negócio global.
Se os e-books desejam sobreviver, talvez a solução passe por transformar livros tradicionais em livros digitais --mas um de cada vez, como se fossem CDs ou DVDs.
Tenho a certeza que milhares de kindles na estante da sala teriam um sucesso social que o solitário Kindle jamais será capaz de atingir.

P.S. "" Parece que o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) errou ao afirmar, na sua pesquisa, que quase dois terços dos brasileiros toleram a violência sexual contra mulheres de minissaia. Não são 65% os tolerantes; são "apenas" 26%.

Em condições normais, saber que um quarto dos brasileiros continua a tolerar a brutalidade contra mulheres não alteraria o essencial do meu artigo da passada semana. Mas como acreditar em qualquer número do Ipea depois desse "flop" homérico?

Por mim, talvez fosse mais útil fazer outra pesquisa e tentar saber quantos brasileiros gostariam de espancar, não as suas mulheres --mas os pesquisadores e responsáveis do Ipea. Tenho a certeza que os números seriam novamente alarmantes. E, dessa vez, verdadeiros.

JOÃO PEREIRA COUTINHO