agosto 06, 2009

Entre pai e filha

"ESTREOU NA semana passada "À Deriva", de Heitor Dhalia.
O filme me encantou pela coesão entre o drama de Filipa, que tenta sair da infância e se tornar mulher, e a alternância entre planos fechadíssimos (como se a câmara procurasse nos dar acesso ao interior dos protagonistas) e planos abertíssimos, mais raros (as praias de onde saem os barcos que podem nos levar para o mar e a vida). E há a performance contida e justa dos atores: Vincent Cassel (o pai), Débora Bloch (a mãe), Camilla Belle (a amante do pai) e a inesquecível Laura Neiva (Filipa, a filha).
Mas o que mais importa é que Dhalia nos oferece um filme que conta de maneira perfeita (peso minhas palavras) o processo delicado e comovente pelo qual uma menina se torna mulher. Não digo "um" processo mais ou menos desastrado e quem sabe patogênico, mas um caminho "certo": o que é preciso para que uma menina, como Filipa, aprenda a amar e a ser amada fora de casa.
Se Freud assistisse a "À Deriva", ele dedicaria ao filme um texto magistral, não sem reafirmar, mais uma vez, que encontramos mais saber na ficção da arte do que nos esforços, sempre grosseiros, de expor nosso entendimento. Sem o gênio de Freud e com a mesma convicção, aqui vou eu.
Para que uma menina se torne mulher -por exemplo, ao longo de um verão- pode ser útil que ela descubra que o pai pode, sim, desejar outra mulher que não seja a mãe e não seja ela, a menina. É também preciso que, não por isso, o amor da menina pelo pai se transforme de vez em ódio ou no ressentimento do ciúme. Ajuda, para evitar que a menina se encalhe numa birra dolorosa, a descoberta de que a mãe também é capaz de desejar outro homem que não o pai.
Nessa altura, a menina ainda poderia decidir que o desejo é uma "porcalhada" dos adultos, e talvez fosse melhor ficar no limbo da infância -quem sabe renunciando definitivamente a todo prazer sexual ou, pior, a toda vida amorosa. Ou, então, ela poderia se tornar para sempre uma espécie de paladina do pai, à espera do dia em que, ele envelhecendo, ela poderá ser sua enfermeira e companheira até a morte.
Há uma condição para que esses caminhos de renúncia não sejam uma escolha forçada: é necessário que o pai se dê conta um dia de que sua filha não é mais uma menina, e que a filha seja e se sinta reconhecida como mulher pelo olhar paterno.
Na apresentação de "À Deriva" no Festival de Paulínia, a plateia (ou parte dela) achou que o tema do filme fosse o desejo incestuoso. Entendo, mas nada a ver. O caminho pelo qual uma menina se torna adulta é quase uma alquimia: existe um fio tênue, mas decisivo, que separa um desejo paterno incestuoso de um olhar do pai que confira à menina a certeza de que ela é desejável como mulher.
O desastre espreita a menina de ambos os lados, tanto se o incesto se realizar quanto se faltar um olhar que confirme que ela está se tornando mulher.
Não são raros os pais que caem das nuvens (justificadamente) quando, já adultas, as filhas os acusam de ter tido desejos ou mesmo gestos impróprios com elas quando eram crianças e adolescentes. Na grande maioria dos casos, trata-se de fantasias necessárias, maneiras de a mulher rememorar que, quando era menina, o pai enxergou nela a mulher que ela viria a ser.
Essa lembrança é tão necessária na vida de uma mulher que, para mantê-la viva, ela pode colori-la e deformá-la - atribuindo-lhe, aliás, a aparência de uma realização de seus próprios antigos desejos incestuosos pelo pai.
Mais grave é o caso em que essa lembrança não se constitui ou se apaga. Nessa eventualidade, a menina pode viver toda sua vida de mulher convencida de que nunca foi e nunca será desejada.
Um detalhe, para evitar mal-entendidos: na vida de uma menina, qualquer homem que esteja na hora e no lugar certos (avô, padrasto, professor e por aí vai) pode exercer a delicada função do pai.
Qual é o desfecho dessa história que se repete a cada dia? O fim do filme comoverá qualquer pai de menina, e seria sacanagem com o espectador contar as últimas cenas. Digamos assim: quando a história acaba bem, o que sobra é a sensação de um amparo paterno, de um lugar de ternura e de amor para o qual é possível voltar para se lavar das eventuais asperezas e sujeiras do desejo, mas um lugar que não infantiliza porque o pai continua enxergando e admirando a mulher que a menina se tornou."

CONTARDO CALLIGARIS

Um comentário:

Anônimo disse...

Por que não me convidou, ora!?