"Deixa como está para ver como é que fica" é o refrão rítmico que revela a essência da paciência brasileira. Essa frase-pérola não sugere resignação nem indiferença, mas sim a decisão estratégica de não influenciar situações que outros devem resolver. A frase "vou pagar para ver" também reflete essa passividade calculada.
Minha mulher piauiense adotou essa estratégia meio zen quando nos conhecemos, para ver se este americano impaciente tinha algo mais a oferecer. Com o tempo, ela viu que eu poderia me abrasileirar. Hoje, não me importo quando amigos chegam tarde a um encontro porque levo uma revista. Mas o passo decisivo aconteceu quando emprestei a meu vizinho meus quatro CDs de jazz favoritos e esperei três meses para tê-los de volta, sem fazer qualquer cobrança.
Por quê? Eu não queria prejudicar a amizade que poderia se desenvolver entre nós. De um modo bem brasileiro, ele me lembrava, com frases vagas, de que não havia esquecido o empréstimo. A primeira foi: "Puxa, seus CDs! Vou devolver já, já" -prazo que ele prorrogou com frases como "deixa comigo" e "um dia desses". Após 60 "dias desses", seus dribles ficaram mais criativos. Alguns, como "quando vai devolver meus CDs?", abreviado para "e os CDs?", eram tão inesperados que me roubavam a réplica.
Quando me mudei para cá, 25 anos atrás, os tais dribles teriam esgotado minha paciência. Uma noite, nessa época, um escritor carioca deu a mim e a mais três pessoas uma carona até um filme, seguido de uma palestra sua. Mas, depois da palestra, ele passou uma hora falando com outros cinéfilos enquanto esperávamos no carro.
Quando ele se envolve num bate-papo, entra em um transe que faz o resto do mundo desaparecer. Tanto que as filas em suas noites de autógrafos são tão lentas que dá para ler sua nova obra antes de ele assinar.
Mas eu não sabia disso 25 anos atrás. Então, quando ele voltou para o carro, pedi que me levasse para casa a caminho do apartamento dele, aonde todos iam. Depois descobri que passaram a noite em volta de um piano, cantando músicas de Cole Porter, meu compositor popular favorito.
O que fica dessa história -que a paciência tem suas recompensas- tornou-se claro para mim só recentemente. Três meses depois de meu vizinho pegar os CDs emprestados, ele os devolveu, com gravações de quatro de seus CDs de jazz.
"Mil desculpas", ele disse. "Esqueça", disse eu, arriando seus CDs na mesa como se fossem quatro ases. Ele também me deu a idéia de fazer esta e outras crônicas. Essa história não me ensinou a emprestar a ele algo se ele prometer devolver no dia seguinte. Não em um país em que "amanhã" pode querer dizer "mês que vem" ou "no dia de são Nunca". Ela me ensinou que, se der a si mesmo uma chance de conhecer alguém, seus pequenos deslizes podem parecer pífios. Por ter decidido deixar como está para ver como é que fica, ficou uma amizade.
MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro"
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