setembro 04, 2008

Na memória dos outros

"Encontrei, depois de muitos anos, uma antiga colega de faculdade. Não a reconheci quando veio ao meu encontro.
O rosto era familiar, olhar e voz eram conhecidos, mas demorei um pouco para me lembrar.
Como meu nome estava pronto na sua boca, e o seu me faltava, usei pronomes genéricos até que ela e o nome me voltassem à mente. Alívio. Não há algo pior do que não se lembrar de quem se lembra da gente.
Já vivi situação contrária, mas o outro não se lembrou mesmo de mim. Diante do seu esquecimento, minha existência sobrou, suspensa. Não me parecia que sua memória falhara, mas que eu não tinha sido suficiente para deixar nele qualquer marca.
A memória do outro tem poder infinito na confirmação da nossa existência! É nela que persistimos durante a vida e perduramos depois de partir deste mundo. Sábios os gregos antigos, que viam na lembrança das gerações futuras a garantia de sua imortalidade.
A memória dos outros é um arquivo do nosso passado, de atos realizados e palavras ditas.
Mas atos e palavras que podem se projetar no futuro. Se os outros não mudarem sua memória de quem somos, estaremos condenados a permanecer sendo os mesmos, imutáveis.
A memória dos outros é senhora do conceito da pessoa que somos. Não será esse o poder que os outros exercem sobre nós e a razão dos esforços para causar boa impressão?
Talvez esteja aí o motivo do incômodo de quando encontramos antigos conhecidos e a conversa não corre. De quando dizemos que não temos mais interesses comuns. Sentimo-nos estranhos à procura de algo, entre nós, esquecido.
A memória precisa de tempo para atualizar vínculos. Não só para recobrar acontecidos, mas para restaurar os sentimentos que os acompanharam.
Como a memória não conserva consigo apenas fatos, mas versões, cada cena registrada é a síntese de uma história. Um balão caindo no quintal, a mordida de um cachorro, um cheiro, um sentimento aparentemente sem explicação... Tudo o que a memória guarda é apenas um pedaço de um quadro imenso.
Lembrar, portanto, é descongelar essas sínteses. Restaurar experiências. Recuperar histórias. No esquecimento, os outros estão perdidos para nós, e nós, perdidos para eles.
Quando esquecemos o que nos unia aos outros, parte da nossa existência escoa de nós.
Resta sempre algum constrangimento diante da memória dos outros sobre nós. Embora Hannah Arendt afirme que nós, homens, somos as únicas criaturas que podem interferir no modo como queremos aparecer para os outros, essa interferência tem limites e não passa de um esforço incerto. O resultado escapa de nossas mãos: está na memória que os outros conservam de nós.
Habitamos a memória dos outros em retratos cuja pose não escolhemos. Apesar de todo o empenho, é improvável que os outros tenham registrado só nossos melhores momentos. Eles podem preservar o rosto de que não gostamos, podem nos fazer maiores ou menores do que somos. Apropriando-se de nós, a memória dos outros tem o poder de nos tornar aqueles que não somos ou que acreditamos não ser.
Diante da memória dos outros, perco a posse de mim mesma. Ela é o único lugar onde, irremediavelmente, meu destino corre à minha revelia".
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DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP,

3 comentários:

Anônimo disse...

Zelita, hoje, ao ler o texto sobre a memória dos outros, que está no teu blog, lembrei-me de uma frase -acho que já a comentei contigo - que uma das personagens do filme espanhol Princesas diz: 'a gente existe porque os outros pensam na gente'.

Anônimo disse...

O texto do teu blog conduz-nos a uma boa reflexão. E eu ando, a contragosto, muito 'reflexivo' nos últimos dias. Não gosto nada disso. (Acho que vou deixar de ler teu blog....) [Como quem diz: a culpa é do teu blog ....Afinal, é fácil encontrar um culpado para os problemas, né não, minha amiga?] Brincadeiras e seriedades à parte, gosto de ler teu blog, já sabes disso.

Unknown disse...

Zelinha, muito interessante esse texto. A memória é algo extraordinário. Ela é o que torna o "passado" presente. Aliás, não há tempos assim: passado, presente e futuro. Mas sim o tempo presente. Somente o presente, o atual, hoje. Sentimos hoje o que vivemos ontem. Daí o tempo presente. E é a memória que traz o ontem para hoje. Já aconteceu muito comigo essa de não lembrar nomes. E, pior, muitas pessoas que foram próximas a mim numa etapa da vida hoje não são mais, e por falta de sintonia mesmo. Penso que, nesses casos, o que vivi ontem não faz nenhum sentido pra mim hoje. E a memória infalível me faz lembrar das pessoas e do quanto elas são, digo, "inadequadas" pra mim hoje.