agosto 31, 2008

O ano que vem em Marienbad

Um sonho!

"Para começar, uma charada. O que existe em comum entre Goethe, Chopin, Wagner, Mark Twain, Alfred Nobel e Freud? Resposta: todos eles visitaram algum dia Marianske Lazne, pequena cidade encravada entre as serras do noroeste da República Tcheca, para usufruir de suas águas minerais e de seus banhos, famosos pelas capacidades curativas.
Era um tempo em que os balneários não serviam apenas para as pessoas passarem as férias mas também para que elas se tratassem de diversos males, dos superficiais, à flor da pele, aos mais profundos, nas entranhas do corpo.
Médicos e casas de saúde aplicavam receituários complexos, que demandavam estadias regulares e, às vezes, longas: doses precisas de água mineral, dietas controladas, passeios ao ar livre com hora marcada, banhos de vários tipos...
Tudo pedia tempo ao tempo, o ócio e a natureza eram aliados da medicina, o tratamento não dispensava um "savoir vivre", com as clínicas próximas de hotéis ou situadas dentro deles, as fontes miraculosas instaladas em parques que convidavam à "flânerie", orquestras e teatros preparados para espantar a melancolia do final de noite.
Era o auge da vida burguesa -e os balneários também procuravam reproduzir o fausto e o conforto das elites.
Assim ocorreu em Marianske Lazne. A cidade foi um dos destinos preferidos de milionários, aristocratas e personalidades ilustres da política e da cultura que buscavam algum tratamento -ou que apenas queriam combinar as férias com certo proveito para a saúde.
Para recebê-los, ao longo do século 19, foram construídos hotéis e prédios que reproduziam em escala provinciana, mas elegante, a arquitetura do período, do neoclássico ao art nouveau. As construções ainda estão todas lá -mesmo depois de duas guerras mundiais, do ocaso da grande era burguesa, da ocupação soviética da República Tcheca e do fim do comunismo-, aguardando agora a invasão do turismo de massa.
Arranjado num minúsculo espaço entre colinas e bosques, o conjunto de palacetes muito delicados oferece uma visão emocionante a quem chega a Marianske Lazne. A maioria está restaurada, e suas fachadas em tons claros faíscam aos olhos, emolduradas pelo azul firme do céu no início da primavera européia.
A história hesita fortemente na cidade, entre o passado e o presente. Dentro dos hotéis, o estilo antigo e luxuoso convive com os recursos de conforto do século 21. As clínicas, com sua decoração oitocentista, viraram spas atualizados, que buscam conciliar os tratamentos seculares com as novidades e tecnologias contemporâneas.
As fontes estão por toda a parte. São mais de 50! Até o hotel Esplanade, um dos mais chiques da cidade, tem a sua, que na abertura da temporada é benzida por um padre, como se fazia no passado.
Mas é no parque central que ficam as principais fontes. Ali, além de bebericar das águas, o turista passeia pelo maravilhoso pavilhão de vidro e aço, descansa diante da fonte cantora, com seus jatos de água sincronizados com música, pára num dos gostosos cafés da Hlavni trida, a rua principal, encostada no parque.
Tempo em conta-gotas
Como os tchecos estiveram longo tempo sob a tutela soviética, afastados das modernidades e facilidades do capitalismo, as adaptações atuais, às vezes, flertam com o kitsch. Mas o turista quase não percebe, tamanha a simpatia das pessoas e a graça dos locais. Além do que, esse anacronismo acaba acrescentando um encanto a mais.
A tranqüilidade e o bucolismo de Marianske Lazne, com cerca de 15 mil habitantes, convidam o turista a cuidar muito bem de si mesmo.
Você acorda rodeado pelo verde dos bosques onipresentes, toma o café com calma na varanda do hotel, vai ao parque colher sua dose de água, senta no banco da praça Goethe (onde há uma estátua do gênio alemão), almoça (se quiser, um faustoso bufê da vigorosa cozinha tcheca), volta ao centro à tardinha para um drinque (as cervejas do país estão entre as melhores do mundo), passeia pelas lojas até o jantar (os excelentes cristais tchecos tentam os olhos e o bolso), assiste ao concerto de uma orquestra de câmara no Casino.
O tempo parece escorrer de um conta-gotas, lentamente. Esportistas agitados podem fazer caminhadas ou corridas pelos bosques, jogar golfe ou cavalgar. Mas a principal aventura na cidade é mesmo escolher as atividades diárias nos spas.
Muito bem aparelhados, eles oferecem dezenas de opções: oxigenoterapia, eletroterapia, pneumoacupuntura, exercícios de reabilitação, ioga, tratamento com jatos de água, cuidados faciais e do corpo (peeling, linfodrenagem, hidratação etc.), banhos (herbais, carbônicos, sulfúricos, vulcânicos!), várias ginásticas e massagens.
Há métodos e lugares especializados em doenças musculares, urinárias, dermatológicas, ginecológicas, digestivas, respiratórias e até mentais. Para tratamentos específicos, é preciso aconselhamento médico especializado, o que pode ser feito na própria cidade.
Maria, Francisco e Carlos
Marianske Lazne (nome que significa "termas de Maria") é apenas uma das pontas do chamado "triângulo" das termas da República Tcheca. Frantiskovy Lazne (termas de Francisco) domina uma das outras pontas. E na terceira fica Karlovy Vary (águas de Carlos).
Todas as três se expandiram na mesma época e têm características semelhantes. Mas Karlovy Vary acabou se tornando a maior e a mais famosa cidade da região. Com suas fontes de águas quentes (elas chegam a ter 70ºC), é bem maior que Marianske Lazne (cerca de 55 mil habitantes), mais agitada e também mais rica e variada do ponto de vista arquitetônico.
Tanto assim que, em meio às interessantes construções do século 19, aparecem aqui e ali edifícios do século 20, inclusive da época comunista, como o prédio onde se realiza anualmente o Festival de Cinema de Karlovy Vary. Criado em 48, é a competição mais tradicional do Leste Europeu, onde vários brasileiros já foram premiados, como Glauber Rocha e Andrucha Waddington.
Mas Karlovy Vary não é a única cidade do "circuito das águas" tcheco que deixou sua marca no cinema. A pequena Marianske Lazne também fez a sua parte. O nome alemão da cidade, além de aparecer num maravilhoso e fundamental poema da velhice de Goethe ("Elegia de Marienbad"), surge também no título de uma obra-prima cinematográfica, o intrigante "O Ano Passado em Marienbad", de 1961.
No filme de Alain Resnais, não há nenhuma cena passada em Marianske Lazne -ou Marienbad. A cidade é citada por um dos protagonistas como um dos lugares onde o misterioso casal de amantes teria (talvez) se encontrado no "ano passado". E foi assim que Marienbad, essa encantadora relíquia da idade de ouro européia, acabou se tornando também uma das mais belas charadas da história do cinema."
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Alcino Leite Neto na Revista da FSP

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