junho 05, 2008


PANOS DE PRATOS
Mércia Pinto

Na minha terra, as histórias de amor cumpriam várias etapas. O flerte, indefinida prática que só era entendida e identificada pelos dois envolvidos, era a primeira delas. Mas até a superação do medo do rapaz de se aproximar da garota e propor namoro levava algum tempo. Depois do ritual inicial de aceitarem diferenciar o olhar e o sorrir um para o outro, do olhar e do sorrir para os demais, apareciam novas emoções, e com elas, tarefas a serem cumpridas. - Com que cara falar para os amigos? Dizer que estavam namorando? Impossível falar sério quando tudo se espalhava em forma de fofoca. As amigas mais tagarelas recebiam da eleita todos os detalhes de como tinha sido a “declaração” do rapaz. Risadinhas à parte, no fundo se sentiam um pouco órfãs, pois o namoro da amiga certamente tomaria parte do tempo para as conversas diárias entre elas. Escondendo a inveja e o ciúme, o grupo se refazia, atualizando “fuxicos”, mapeando as ex-namoradas do rapaz, as brigas entre o casal, bem como eventuais maldades entre os dois: festas e cinemas escondidos um do outro e pequenas infidelidades recíprocas. Se o frágil laço entre os dois resistisse a tantos repuxos, depois de um mês já estavam voltando do colégio de mãos dadas. E haja inveja das amigas! Ah, como elas desejavam um namorado que se mostrasse assim para todas, na saída das aulas?
Dizem, o primeiro beijo acontecia logo depois. Não sei quais estratégias eram usadas para se conseguir chegar incólume até esse dia. Tudo para mostrar que a moça era de boa família e fora educada para manter sob controle os seus “demônios do baixo-ventre”. Mas o tempo passava e aos poucos o rapaz ia sendo apresentado ao círculo familiar da garota. Aos seis meses de namoro já freqüentava a casa dela e não precisava pedir licença para entrar. No clube dançavam no centro do salão, coladinhos, sem muito controle dos pais. De quando em vez, davam umas fugidinhas para irem sozinhos ao cinema. Mesmo vigilantes com relação a uma terceira força que pudesse desatar aquele laço, a história evoluía. Um belo dia, o rapaz surpreendia a namorada com uma aliança de compromisso. Um aro de ouro reforçava os laços entre os dois com pequenas pérolas ou rubis. Dali em diante eles ganhavam o adjetivo de “quase noivos”. Já se sabia que pensavam em casamento. Novo golpe no coração das amigas. Passear de mãos dadas não acontecia mais. Em casa ainda namoravam sob os olhares vigilantes dos pais, mas quando saíam era de “mão no ombro”. Possivelmente, ela já conhecia a família do rapaz. O próximo evento era o pedido de casamento. Imprescindível! Os pais teriam que saber se o “cabra” tinha mesmo coragem de enfrentar a família, falando de seus sentimentos para com a garota e de suas pretensões de bancá-la pro resto da vida. Mesmo porque o investimento na preparação do enxoval e na compra dos equipamentos domésticos eram muito grandes. Não poderiam ser efetivados assim de uma hora pra outra. Lembro-me da palidez daqueles domingos, quando minhas amigas apareciam de manhã com uma aliança no dedo. Sabia-se que na véspera havia sido selada a ausência de mais uma entre nós.
Entre o noivado e o casamento, o enxoval preenchia todos os interesses da moça. Entretenimento total para mãe e filha, que só pensavam nisso. E aquilo? Ora, aquilo era lá! Ainda estava longe, em segundo plano. Comprar tecidos, ir às costureiras, bordadeiras, marceneiros para fazer os móveis, e nos últimos meses a preparação da festa. Trabalhavam dia e noite e até esqueciam do resto da vida. Era comum as noivas também freqüentarem um curso na Escola Doméstica São Rafael, para aprenderam o ofício de ser esposa e enfrentar o futuro desafio de ser dona-de-casa. Imagino freiras ensinando a gerir uma empresa que elas, por conta dos votos de castidade, nunca tinham conhecido. Ensinando a cozinhar, bordar, gerir as serviçais e a economia doméstica. Dando conselhos sobre intimidades que nunca tinham experienciado.
Poucos dias antes do casório, a noiva abria sua casa para as amigas e oferecia um chá. Não era despedida de solteira. Isso era ritual masculino, num bordel, exclusivo para os amigos. Moças não precisavam disso. E o chá de panelas, tão comum nos dias de hoje, humilharia a família e os noivos. Nessa época, o objetivo do encontro era a exposição do enxoval, que mantido em segredo até aquele dia deixava os convidados ansiosos para saber como seria o cenário da nova vida. Todas as peças estariam envoltas em papel celofane lacrado com fita, para que pudessem ser apreciadas e invejadas por todos. Na sala de visitas estariam os paninhos de cobrir móveis e outras miudezas. Na sala de jantar, as toalhas de mesa, de chá, centro e caminhos de mesas espalhados pelos móveis. No quarto, o êxtase de todas as mulheres! Colchas de Piquet bordado, toalhas de banho, rosto e de visitas, sutiãs, calcinhas. O interesse maior eram as camisolas bordadas com renda francesa, com casinha de abelha. Inspecionavam quantos “liseuses”, quantos “peignoirs” a noiva tinha no enxoval e se as peças de lingerie, laquê, cassa e cambraia eram suficientemente bordadas. A camisola do dia, item mais importante da categoria “cama”, ficava no centro da mostra. Causava suspiros, arrepios e ais em todas as mulheres. Depois a cozinha, lugar da última apreciação. A última esperança de ver algo que vinha das mãos da noiva em si. É que por menos talento doméstico que ela tivesse, cobrava-se que pelo menos uma coisa no enxoval deveria ter sido feito por ela. Caso contrário, como atestariam sua competência doméstica? Sim, porque durante o noivado ela certamente havia ganho de presente da sogra (ou da avó) o livro da Dona Benta e por certo já tinha feito algum prato especial para mostrar seus dotes culinários ao futuro marido. Assim, eram os panos de pratos que salvariam a coitada dos adjetivos de desleixada, de mal preparada para ser esposa e para cuidar da casa. Tesoura, linha, agulha e simples pedaços de algodão cru compunham o material de exercício do bordar, em que a noiva muitas vezes aprendia os pontos básicos do ofício. Lembrança e testemunho da tentativa era para ser guardada, não? Agrupados em semanas, eram peças obrigatórias para uma noiva bem “enxovalhada”. Levavam várias “semanas de panos de pratos” para a nova vida. Lembro-me ainda daquela secreção meio azeda que ficava presa em minha garganta, quando via uma amiga de cabeça baixa, entregue aos bordados dos famosos paninhos. Sabia que em pouco tempo ela desapareceria de vez.
Sete dias, sete panos e sete diferentes figuras para bordar. E embaixo de cada uma, o dia da semana correspondente. A unidade do conjunto era dada pelo tema. Camponesas ou baianas com diferentes cestas de compras para cada dia. Holandesas com chapéus enormes, tamancos de madeira carregando verduras, queijos, frutas; e no domingo uma torta. Coisa inteiramente desconhecida no clima tropical, bordavam-na em ponto cheio com linha branca, imitando a cobertura de chantilly que caía pela bordas de um prato. Por cima, umas manchas vermelhas querendo ser morangos ou cerejas. Talvez imaginassem que aquelas pequenas frutas vermelhas e exóticas fossem símbolos da felicidade das mulheres dos outros mundos, e que em cada ponto que bordassem construindo aquela imagem ser-lhes-ia conferida a mesma felicidade.
Eu também quis ter namorado e o tive! Ele não foi me buscar no colégio. Nunca foi dançar comigo nas tertúlias. Só eu sabia dançar. Dizia que aquilo era a primeira manifestação do ato sexual. Como as outras garotas, eu também quis ser noiva. E o fui! Mas não tenho lembranças de como se deu a seqüência de todos aqueles rituais de passagem; mãos dadas, primeiro beijo, mão no ombro etc. Incrível como, lembrando-me de tanta coisa, tenho sempre a impressão de que comigo esses passos vieram todos de uma vez, e por mais que eu tente não consigo organizá-los cronologicamente. Ao cinema escondida, fui muitas vezes. Mas desde o início notei que havia entre nós dois um conflito de interesses. Enquanto eu queria ouvir aquele samba, trilha sonora do jogo de futebol no documentário da Herbert Richers, ele ficava se escondendo do lanterninha. Quando a deusa da Columbia Pictures aparecia na tela com aquela tocha faiscante apontando para o alto, eu já estava arrependida e de braços cansados. Tentava relaxar um pouco quando o condor da tela abria as asas, e a audiência gritava bem alto: XÔ! Ele parecia se espantar e voava. O filme estava começando e meus tormentos poderiam desaparecer em função das emoções do enredo. Qual nada! O tempo me ensinou que certos fenômenos da natureza não são facilmente controláveis. Acho que é por isso que, hoje, cinema para mim é só eu mesma e pronto. Mesmo assim, lembro-me bem que fui compromissada, engajada, escolhida e muito mais. Ele me levou a passear em ruas escuras e estreitas, até onde eu via animais que sentindo o cheiro do sangue de seus semelhantes uivavam, sabendo que iriam ser também sacrificados. Mas antes disso, fui obrigada a servir-lhe, porque eu tinha sido escolhida! Comecei aprendendo a bordar bem miudinho o nome dele em seus lenços. Como muitas moças de minha geração, tinha até num pedaço de pano uma amostra dos diferentes tipos de letras e anagramas para escolher o modelo.
Eu também quis ter toalhinhas de crochê em cima dos móveis, toalhas de linho bordadas em cima da mesa de jantar, camisolas, liseuses e peignoirs. Só não sabia como iria adquirir o hábito do uso desses acessórios depois de casada. O calor da região não permitia tanta roupa. Lembro-me de que, quando fui pedida em casamento, ganhei da minha mãe uma camisola e um peignoir amarelinho de nylon completamente transparente. O noivo esperou que ela saísse da sala e zangado me disse: no dia em que você usar essa roupa de puta, eu a deixo. Além disso, quero lhe avisar que não suporto agarrado na cama, e portanto vamos dormir em camas separadas. Eu nunca pensara que isso fosse impedimento para nos casarmos. Afinal, havia ficado noiva minutos antes.
Do lado de minha mãe, acho que se preocupava um pouco mais com a roupa íntima das noivas, pois no outro dia me levou a uma costureira famosa e encomendou dois conjuntos de camisola e peignoir de cassa: um amarelo e outro vermelho. E só! Parece que ali terminavam minhas necessidades! Mas lembro, eles eram lindos!. Naquela época, não se compravam enxovais prontos. Como nos contos de fadas, tudo era encomendado, esperado, desejado e recebido. Na minha história, porém, fui vendo aos poucos que se eu queria me preparar para casar, teria eu mesma de fazer ou comprar as peças. Lembro-me dos inúmeros paninhos de crochê que fiz, dos quardanapos de labirinto que comprei para cobrir bandejas e impressionar visitas. Ainda me restam algumas coisas desse tempo. Lençóis e fronhas de percal róseo e verde que bordei. Cada vez que dou com eles no fundo do armário, recordo-me da exigência do noivo: dois de cada, pois vamos dormir separados. Um jogo de toalhas de banho verde-escuro, uma toalha de labirinto rósea e outra de linho bege com flores bordadas em azul-marinho e barra de ponto “a jour”, cujo modelo retirei da Enciclopédia Familiar Larousse. Mas as recordações mais vivas dessa época são as “semanas de panos de prato”. Como todas as noivas, também me esqueci da vida, bordando-as. Meu envolvimento foi tamanho que hoje imagino que inverti as coisas; a cozinha tomava o lugar mais importante da casa. Às vezes me pergunto quantos metros de ponto de corrente bordei para preencher a cabeça das pobres camponesas e imitar seus cabelos.
Quantas vezes acordei com preguiça de bordar aquela quantidade de pedras do caminho que levava as holandesas ao mercado. E todas multiplicadas por sete. - Bordo-as em ponto cheio ou ponto atrás? Retiro-as do caminho original ou cumpro a tarefa até o fim? E as pequenas manchas verdes imitando o capim e que estavam no risco? Na Holanda, isso não é capim, é “relva”, lembrava-me. Verde-esperança com algumas pequenas manchas em amarelo para não desesperar, bordava eu. Como seriam as aplicações nos aventais das camponesas? Bolinhas, florezinhas ou quadradinhos? Meu entusiasmo só era interrompido pelo chamado da empregada que gritava da cozinha:

– O café já está na mesa!

Eu abandonava o serviço, tomava rapidamente qualquer gole e voltava correndo ao trabalho. No meio de um caminho de pontos de areia ouvia novamente seu grito:

– Vem comer teu pão!

A reação era rápida: “Diabo, agora amassou!”

Irritada, colocava o bordado em cima da cadeira e corria. Comia o resto do pão e voltava rapidamente. Ponto cheio, e corrente. Arremates têm de ficar invisíveis. E nada de pontos de alinhavo. Só ponto de areia, atrás e matiz. Em cada ponto ia dando um nó na minha história. Depois de terminado, os fios de linha têm de ser cortados rentes ao pano. Aplicações com diferentes tecidos, fixados com pontos de casa ou de sombra para preencher todos os vazios do risco. Bordado bem feito e caprichado é aquele em que não se nota a diferença entre o lado direito e o avesso. É que eles vão enxugar o cuspe de quem comeu no prato.

Mércia Pinto – maio, 2008

Nenhum comentário: