O texto do Cristovão Tezza - O Olhar de Curitiba - reacendeu, além de lembranças, o meu olhar para Curitiba.
E pensar que fiquei mais de 15 anos ! Até o último dia fui, para dizer o mínimo, um ser exótico na paisagem (não vou expor aqui explicações).
Nos primeiros dias (quando os "forasteiros" ainda não eram tantos), aprendi que não devia falar "bom dia" no elevador. O vizinho não responde e entra em pânico (o que virá depois? ele deve pensar). Para o porteiro? nem pensar!(ele não passa de um empregado, é invisível). E o motorista do ônibus que você pega sempre no mesmo horário, ouvindo um bom dia? Ah! este nunca vai te esquecer!
Enfim, falar bom dia, puxar conversa e, ainda, sorrir? Total inadequação! Não espere ser compreendida e perdoada. Afinal existem outras culturas, você não é de lá, isto eles nunca irão pensar. Seria preciso uma boa vontade que eles nunca terão com alguém "de fora".
As idiossincrasias deste povo são tantas!
Não se deve cogitar, por exemplo, de ter o telefone ou saber onde mora o colega com quem trabalha há mais de 10 anos; nem jamais esquecer de pedir desculpas por "estar incomodando", ao telefonar para a casa de alguém (mesmo que seja 3 horas da tarde ou 10 da manhã). De uma certa forma, você está entrando na casa deles, sem ser convidada.
Após algum (muito) tempo na cidade, já se tem "conhecidos" que, no auge da intimidade, te cumprimentam: "tudobem?entãotábom". Assim junto, sem espaço para eventual resposta que, na verdade, não interessa. Se a conversa continuar, passa-se a falar do (mau) tempo...
O mais importante aprendizado é o de ser transparente, isto mesmo, invisível. Menos para o efeito de esbarrarem em ti. Ah! isto eles não fazem. E, se ocorre, involuntariamente, mil perdões não resolvem...
Outra peculiariade dos curitibanos é que eles "não falam com estranhos".
Mas invisíveis mesmo são os humildes, os pobres ("maloqueiros", no dialeto local). Não precisa ser "carrinheiro" (que trabalha de graça para a Prefeitura na coleta de lixo reciclável, puxando seus carrinhos onde, além de lixo, carregam as crianças), mesmo os operários/trabalhadores têm um defeito imperdoável para eles, são pobres.
Aqueles que,além de pobres, forem negros, gays ou deficientes físicos que se cuidem, pois estão na mira dos "carecas"...É só ver as estatísticas.
Mas a ira curitibana se revela, em sua plenitude, no trânsito, quando se manifesta, que pretende mudar de faixa...Com relação aos pedestres é inacreditável como se comportam. Na faixa, com o sinal fechado, paira a ameaça do ronco dos motores impacientemente pressionados. Não sei em qual outra cidade,a cada hora, é transmitido boletim de atropelamentos.
E como diz o Tezza, em Curitiba, se aprende a ir sozinho, pois não adianta pedir informação. Qualquer que seja. Antes de terminar a frase, já vem a resposta seca: "não sei" . Eles não falam com estranhos!
Curitiba não é só avessa e indecifrável, ela pode ser cruel!!!
O OLHAR DE CURITIBA
Cristovão Tezza
"Em nenhum lugar do mundo o olhar do Outro será tão mortal como em Curitiba. Não ria na festa, exceto como disfarce; não chore no enterro, a menos que estejam vendo; não erga os braços, temerário assim no meio da rua. Em último caso, protegido no bar, solte os nervos da gargalhada, do tapa demasiado forte nas costas, do palavrão retumbante e confira no mesmo instante o viés alheio: a extroversão não é alegria, é um risco calculado. A fila de ônibus é feita de Outros - por isso que se respeita. Não fale tão alto, exceto quando bêbado - e então fale tudo de uma vez, tudo aquilo que você vem observando a vida inteira e nunca lhe deram chance. Leia os jornais da terra, que são ruins de pedra, e vigie nas entrelinhas o que os calhordas andam inventando nos palácios. Investigue cada nome da coluna social: o próximo pode ser você, e mal acompanhado. Melhor nem sair no jornal: os outros vão rir, e a inveja vai te comer. Nas cerimônias públicas, fique firme, a gravata ajeitadinha, e meta o olho na calça curta da autoridade, na peruca torta da madame, na viadagem do orador, no ridículo daquele um que está sentado duas poltronas à frente cheio de caspa no paletó. Quem é esse que sem mais nem menos lhe pede informação na rua? Não é daqui, senão ia sozinho.
Como sozinho vai Dalton Trevisan, desde sempre, o paradigma de Curitiba, a avessa, a indecifrável, a incorruptível Curitiba, que por nenhum preço do mundo aceita um carimbo na testa, por mais alto que a banda toque.
E como reclamam dele! Como metem o pau, como descobrem defeitos, como lhe cobram empadinhas! E as pedras, então? Rútilas, cortantes na cabeça. De tal modo que ele, santo homem, decidiu compilá-las em dois ou três parágrafos - Quem tem medo de vampiro? - para maior facilidade de manuseio. Inútil: o jornalismo ingênuo decidiu que ele fazia autocrítica! Um curitibano fazendo autocrítica, já se viu?! Ridículo! Nem no Partidão! Antes beber da água do Rio Belém!
Em outra encarnação - Curitiba está povoada de espíritos - Dalton Trevisan também foi curitibano, quando a cidade sequer existia; e ao nascer foi só esperar que o Vampiro lhe desse uma face, sempre a mesma, de microscópicos relevos que ocupam todas as ruas, por mais que tombem as casas, que se atravessem os expressos, que se iluminem os acrílicos, que se plantem pinheirinhos. Saudades de Curitiba de trinta anos atrás? Saudades das polaquinhas? Saudades da velha manca? Nem é preciso. Curitiba é um Olhar, e até meu avô sabia que olhar não ocupa espaço. Mas como esmaga!
Nenhuma cidade tem mais vergonha na cara que Curitiba - tanta, que emudece, na timidez doida e doída, no silêncio pesado de alguma coisa mais grave, mais forte, mais alta que o riso fácil brasileirinho.
Só uma proteção: olhe você também. E os Outros darão o troco, porque o nosso jogo é este, fuzilante.
Olham e dizem: mas ele escreve sempre a mesma história, e cada vez mais torto! Pois por que não reclamam de Samuel Beckett, que passou a vida dizendo a mesma frase pela metade e nunca provou uma broinha de fubá mimoso? Está certo que o tal bradava a morte do Homem, sem usar vírgula; mas Dalton Trevisan aponta com o dedo, e a sintaxe irritadiça, quem está morrendo - é aquele ali na esquina, com uma espinha na testa, é a piranha de meia furada, é o Dario que já morreu e roubaram o relógio dele. E acabou-se a página. Que culpa o Vampiro tem se o sangue é sempre o mesmo? Não é só na Europa; também em Curitiba não há nenhuma esperança na face da terra. Alguém precisa nos lembrar disso, por escrito, porque a memória é frágil, e o mundo está cheio de levianos alegrinhos fingindo que a vida é o mar de rosas da rádio Colombo - e não esse espanto desajeitado que atravessa o mundo inteiro, do mesmo modo que a Barreirinha.
Olham e dizem: mas que vocabulário estreito, que coleirinha de chavões! Pra que mais, se o que ele quer é uma só palavra na veia, a que mata! O bom veneno é o já testado, como o café da Boca.
Olham e dizem: mas por que esse nojo do povinho, dos miseráveis, dos pequenos? Pois por acaso alguém é Nobre, alguém é Grande? Você conhece? Mora aonde?
E depois de olharem e dizerem até a última gota de cafezinho, querem recuperar a ovelha desgarrada (que todos somos) tentando lhe pregar uma peça de ouro, um medalhão no peito, para desfrute na praça, com casquinhas pra todo lado e logotipo moderno. Nunca! Pois Curitiba é assim: não se entrega; comparece à cerimônia, mas ri até o gozo dos que caem na arapuca e sobem no palco para receber os louros e as palminhas. Quem perdoa a coroação de Emiliano Perneta? (Mas a boca-livre estava ótima.)
Por último: mas nem uma fotografia? Se Vampiro não sai em espelho, vai sair em fotografia? Quem fotografa Curitiba vê fachadas - muito bonitas - e mais nada. Olhe bem. Ela está em outra parte. Não perca tempo com as fachadas. Melhor o azulejo branco do velho Palácio e o cheiro do bife, melhor a peçonha destilada na cerveja.
Dalton Trevisan, é certo, será sempre assim, revisitado a cada linha reescrita mil vezes. Quanto à sua secreta alma gêmea, Curitiba, esta dependerá da força dos espíritos ante a horda dos invasores do Terceiro Milênio - o povão da periferia, os catarinas migrantes, os funcionários transferidos, os nordestinos teimosos... Acabam de se mudar e em uma semana já não visitam ninguém sem convite prévio - é a primeira das Sete Provas de Fogo, que às vezes levam uma vida inteira. Basta passear no calçadão da XV, percorrer os domingos do Passeio Público - é essa a cor de Curitiba? De qual delas? Do Município Oficial, teimando em inventar uma História que se perdeu, ou, quem sabe, nunca existiu além do paranismo risível, mas que sobrevive heróico e retumbante nas páginas da Gazeta? Da Curitiba estrangeira que chegou e vem chegando de toda parte fazendo filhos curitibanos e ocupando apartamentos? Ou do Olhar intangível e onipresente que coloca cada pose no seu devido lugar, com a impiedade dos profetas? No ano 2000 - que está na porta! -, que alma teremos nós? O rosto já sabemos: calçadões-rolantes, heliporto na Santos Andrade, bonde solar. Mas e a alma?
Que se preparem os espíritos. Será uma luta lenta, silenciosa e medonha. Porque é mais fácil mudar todas as canaletas do Expresso em sete dias que suprimir o Olhar, a Ira e a Curitiba de Dalton Trevisan".
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/contos/p_olhar.htm
2 comentários:
Esta eh a melhor descricao de Curitiba que ja li. Alias ha muito envio elogios ao Tezza que considero o melhor cronista da Gazeta. Valeu!
Esse post foi bem sincero não, gosto desse tipo de texto, eu vejo a opinião de verdade das pessoas, e não gosto quando elas tentam so escrever um texto bom, dá pra ver um pouco de vc nele...
Muito bom, vou preparar o me olhar sobre curitiba também mas enquanto isso, o link do seu vai tar lá no post.
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