janeiro 18, 2014

Delatores e bruxas


"Delação premiada é o arranjo entre Estado e bandido. Não tem como base o arrependimento. O Estado oferece perdão ou redução significativa da pena em troca da alcaguetagem.
Esbarra em princípios morais. Trair é feio. Não se ensina às crianças.
O poder público pode criar uma espécie de previdência para quem faz do crime um meio de vida, com a possibilidade de, diante da ameaça punitiva, aposentar-se depois da confissão?
E como lembra Steven Pinker, em "Os Anjos Bons da nossa Natureza"  (aqui) (Companhia das Letras, 2013), Kant recomenda que os Estados, no correr da guerra, evitem táticas que minem a confiança em uma "paz futura", como o "assassinato político" e o "incitamento à traição".
A Lei 12.850/13, que definiu "organização criminosa" e os meios de prova, foi saudada como instrumento moderno e eficaz de combate à criminalidade.
Mas "cooperação premiada", nome dado à delação, não é novidade. A parte penal das Ordenações Filipinas vigorou no Brasil até 1830 e estabelecia "como se perdoará os malfeitores que derem outros à prisão".
Quem consultar "O Manual dos Inquisidores" (Lisboa, Edições Afrodite, 1972), atribuído a Nicolau Emérico (em catalão Nicolau Aymerich), encontrará a fonte e os dilemas éticos de procedimentos usados até hoje, como as técnicas de interrogatório baseadas na mentira e na dissimulação, a infiltração policial e a própria delação premiada.
Parece absurdo, mas Emérico (1320-99), inquisidor de Aragão, buscava mecanismos racionais de investigação. Ainda que os fins configurem hoje o avesso da racionalidade (descobrir se tal mulher se deitara com o diabo, por exemplo), ele sugeria fórmulas para que a verdade em torno de um delito pudesse emergir, sem erro.
Em relação à tortura, Emérico era cauteloso: "Há homens fracos que, à primeira dor, logo confessam crimes que não cometeram". Entre conselhos práticos, indicava o tormento como alternativa extrema, depois de esgotados todos os meios --o que não impediu sua ampla tolerância (ainda que ilegal), como alternativa primeira de policiais de todo o mundo, até pelo menos meados do século 20.
Assim como a tortura, a delação premiada não assegura a verdade.
O delator pode desviar o olhar das autoridades para evitar retaliações. Pode poupar o chefe para garantir a subsistência. Pode transformar inocente em culpado e vice-versa. Isso sem contar os efeitos da delação em ambiente policial corrupto.
A Lei 12.850 pelo menos fixa regras. A primeira delas é afastar o juiz dos entendimentos, a cargo de delegados e promotores. Tem juiz que se esquece de ser juiz, converte-se em tira ou em justiceiro de empresários e políticos, ficando, em tese, impedido de julgar. A lei não permite a condenação de alguém só com fundamento na delação e tenta punir o delator mentiroso.
A nova lei cria um privilégio que só o delator tem: não se submete à liberdade de imprensa. É crime, pena de 1 a 3 anos de reclusão, "revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito". O dever de sigilo não é do jornalista, mas a lei transforma a delação em algo ainda mais obscuro do que já é.
Acreditar que agora sim o crime organizado será desmantelado no Brasil é como acreditar em bruxas".

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO

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