"Trezentos e sessenta e cinco dias de farsa, de conversas imaginárias, de não diálogos, palavras atravessadas, da glote que se fecha, asfixia, na garganta áspera o ar que passa queima como gelo.
De não presença, não sorrisos, de perda de tempo.
Ano de indecisões, ou decisões erradas, desastre iminente, passos mal dados, de indefinição, de atrasos, adiamentos. De insegurança, arrependimento, da brutalidade da dúvida, de não pensar, ou pensar demais. De caixas postais vazias, telefones sempre mudos, mensagens dissipadas no éter como fumaça virtual.
Da ausência de desejos ou ambições. De um grito desesperado no vácuo, onde o som não se propaga. Do céu coalhado de coisas mortas, estrelas que já não existem (mas só agora seu brilho nos atinge, estertor feito de fótons).
De oportunidades desperdiçadas, contatos nunca estabelecidos. De papos de araque, dissimulações, promessas não cumpridas (feitas e recebidas). De pouco se lixar, sem prazos, sem projetos, sem horizonte, bússola de agulha desmagnetizada. De um único olhar, longo, indiferente, que fita uma planície de vidro opaco.
Ano de falta de ideias, de lugares-comuns, ano da página em branco, do teclado em silêncio, do caderno vazio, de falar sozinho, ou nem isso.
Do eco dos próprios passos na madrugada, rua escura coberta de névoa, do caminhar sem rumo, de nunca ter rumo, de escolher os piores trajetos, da angústia da perda total.
Ano de roer as unhas, ranger os dentes, de sopro no coração, de sangrar aos poucos (cada gota que mancha traz o vermelho do ferro e a densidade do mercúrio). De perder apostas, ficar devendo, implorar clemência, ouvir um não a cada hora.
Ano de vacilar na curva, agonizar, enxergar o próprio corpo do alto, percorrer túneis, uma luz, depois o escuro mais escuro, todos os comprimentos de onda em absorção total.
De ir embora para nunca mais voltar, mas acabar voltando por falta de alternativa. Do reflexo em estilhaços, paredes que se fecham, um quarto frio, TV fora do ar, solidão.
De mandar mensagens a si mesmo, passar datas em branco, esquecer essas datas, ou lembrar e não sentir nada, nada mesmo, fechar os olhos, fazer contagem regressiva e pedir para acabar logo.
Ano sem metáforas nem ironia, nenhuma figura de pensamento ou linguagem, frieza, ano bege, indistinto. De dissonâncias, harmônicos fora de fase, interferências destrutivas.
Ano de isolamento, de mergulhar nas canções mais sombrias. De assistir mentalmente a sessões contínuas de filmes em que ninguém é feliz. De espinha em pedaços e coração intranquilo.
De experiências terríveis, aniquilação, ampolas vazias, chegar ao limite, das janelas mais altas, de escorregar com tudo, de deslizes sem volta ou perdão.
De ser um fio desencapado, nunca relaxar. De ter uma britadeira endógena entre os ouvidos, 24 horas por dia, descanso impossível, inferno, vigília autoimposta.
Ano de dor, tensão sem fim, músculos contraídos, sinapses mergulhadas em um torpor de afasia, impulsos nervosos abaixo do nível de detecção. De tremores, delírio na noite, lençóis ensopados.
Ano de todos os males, de almas penadas, dos círculos concêntricos do inferno, de uma espiral de danação, dos pesadelos mais realistas.
Da cidade medonha, do caldo podre da enchente, dos parasitas no esgoto, das doenças sem cura.
Do erro do médico, do planejamento precário, da combustão incompleta, da fuligem que mancha o pulmão.
Do papel que não vale nada, chutes, números sem sentido, de conclusões indevidas. Do experimento que falha, do desespero, da fraude, da execração.
De não entender nada, de correr sem ter aonde chegar, do ônibus que não para. Dos rostos indiferentes que passam na chuva, das vozes distantes em línguas guturais, corredores que nunca terminam, labirintos que desembocam em novos labirintos.
Cinquenta e duas semanas em que cem flores murcham. De martírio, desprezo, incômodo, deslocamento, deficit de atenção, pensamentos obsessivos.
Do fracasso recorrente, vexame, vergonha. E da desesperança, eterna companheira.
Todo ano novo pode ser o pior ano de nossas vidas".
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
Nota : Max Ernst
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