María Dolz, uma solitária editora de livros, admira à distância, todas as manhãs, aquele que lhe parece ser o “casal perfeito”: o empresário Miguel Desvern e sua bela esposa Luisa. Esse ritual cotidiano lhe permite acreditar na existência do amor e enfrentar seu dia de trabalho.
Mas um dia Desvern é morto por um flanelinha mentalmente perturbado e María se aproxima da viúva para conhecer melhor a história. Passa então de espectadora a personagem, vendo-se cada vez mais envolvida numa trama em que nada é o que parecia ser, e em que cada afeto pode se converter em seu contrário: o amor em ódio, a amizade em traição, a compaixão em egoísmo.
A história, narrada em primeira pessoa por María, sofre as oscilações de seus estados de espírito, de seus “enamoramentos”, evidenciando que todo relato é tingido pela subjetividade de quem conta.
Ao mesmo tempo, a presença incômoda dos mortos na vida dos que ficam é o tema que perpassa este romance, à maneira de um motivo musical com suas variações. Para desdobrar e reverberar esse mote, Javier Marías entrelaça a seu enredo referências a obras clássicas da literatura, como Os três mosqueteiros, de Dumas, Macbeth, de Shakespeare, e, sobretudo, o romance O coronel Chabert, de Honoré de Balzac.
Sustentando com maestria uma voz narrativa feminina, o autor eleva aqui a um novo patamar sua habilidade em nos envolver no mundo interior de seus personagens. Com Os enamoramentos, obra de plena maturidade literária, Javier Marías se reafirma como um dos maiores ficcionistas de nossa época.
Leia o início e outros trechos:
"É outro inconveniente de sofrer uma desgraça: para quem a sofre, os efeitos duram muito mais do que dura a paciência dos que se mostram dispostos a escutá-lo e acompanhá-lo, a incondicionalidade nunca é muito longa se tingida de monotonia. E assim, mais dia menos dia, a pessoa triste fica sozinha quando ainda não terminou seu luto ou já não lhe consentem falar mais do que ainda é seu único mundo, porque este mundo de angústia resulta insuportável e afugenta. Ela se dá conta de que para os outros qualquer desgraça tem data de caducidade social, de que ninguém é feito para a contemplação do pesar, de que esse espetáculo só é tolerável durante uma breve temporada, enquanto nele ainda há comoção e padecimento e certa possibilidade de protagonismo para os que olham e assistem, que se sentem imprescindíveis, salvadores, úteis. Mas, ao verificar que nada muda e que a pessoa afetada não avança nem emerge, sentem-se rebaixados e supérfluos, consideram isso quase uma ofensa e se afastam: “Será que não lhe basto? Como é que não sai do poço, se me tem a seu lado? Por que se apequena em sua dor, se já passou algum tempo e eu lhe dei distração e consolo? Se não pode levantar a cabeça, que afunde ou desapareça”. págs 68/69
"Sim, todos nós somos arremedos de gente que quase nunca conhecemos, gente que não se aproximou e passou ao largo da vida de quem agora queremos, ou que se deteve mas se cansou com o tempo e desapareceu sem deixar rastro ou só a poeira dos pés que vão fugindo, ou que morreu para aqueles que amamos causando-lhes mortal ferida que quase sempre acaba cicatrizando. Não podemos pretender ser os primeiros, ou os preferidos, somos apenas quem está disponível, os restos, as sobras, os sobreviventes, o que vai ficando, os saldos, e é com esse pouco nobre que se erigem os maiores amores e se fundam as melhores famílias, disso provimos todos, produto da casualidade e do conformismo, dos descartes e das timidezes e dos fracassos alheios, e mesmo assim daríamos qualquer coisa às vezes para continuar junto de quem resgatamos um dia de um sótão ou de um leilão, ou tiramos à sorte nas cartas ou nos recolheu dos detritos; inverossimilmente conseguimos nos convencer dos nossos fortuitos enamoramentos, e são muitos os que creem ver a mão do destino no que não é mais do que uma rifa de vilarejo quando o verão já agoniza…" pág 126
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