agosto 02, 2012

O SENTIDO DO FIM


Uma obra-prima 

"Todos nós vivemos imersos no tempo. É ele que nos molda e sustém. Mas também é ele que nos atraiçoa. Eis a lição que Tony Webster, o subtil e evasivo narrador do último romance de Julian Barnes, aprende tarde na vida, ao querer dar um sentido ao passado. Já na reforma, tranquilo na sua solidão (mantém um contacto caloroso mas pouco regular com a ex-mulher e com a filha), recebe um misterioso eco da juventude, quando a mãe de uma namorada ocasional da adolescência, com quem não se chegou a envolver de forma séria, lhe deixa em testamento o diário de um dos seus melhores amigos: Adrian Finn. Ele era o mais inteligente e promissor do seu grupo de amigos, mas suicidou-se, lançando com a sua morte uma sombra sobre os companheiros. Tony recupera então, pouco a pouco, as memórias dessa amizade antiga e desse amor que não chegou a ser, mergulhando na matéria «mutável» do passado, com os seus abismos e armadilhas, as suas verdades voláteis e segredos dolorosos. Barnes conduz Tony até à revelação dos seus erros, da sua cegueira, da dor que inflingiu aos outros sem se aperceber. E fá-lo com tal mestria que o desenlace da história, quando chega, é tão poderoso e surpreendente para o protagonista como para o leitor. Só por esta precisão narrativa, The Sense of an Ending seria sempre um grande livro. Mas a escrita de Barnes — com as suas frases perfeitas, por vezes a raiar o sublime — torna-o uma obra-prima."
José Mário Silva, Revista Expresso

"...No final da adolescência, num liceu no centro de Londres onde “o darwinismo social pretensioso da classe média britânica estava sempre implícito”, Tony e os seus dois amigos inseparáveis, Colin e Alex, conhecem Adrian Finn, um rapaz alto, tímido e excecionalmente inteligente. Adrian integra o grupo e é admirado por todos (eles acham que ele é o único com “uma vida digna de romance”), mas permanece à margem do “caos hedonista” que os faz ter fome de livros e fome do sexo que não têm e, sobretudo, enaltecer o mérito e a anarquia. “Incitava-nos a acreditar na aplicação do pensamento à vida, na ideia de que os princípios deveriam guiar os atos.” Era um rapaz provocador, mas compenetrado e meditativo. Já em Cambridge, e pouco depois de, por carta, comunicar a Tony o seu envolvimento com a ex-namorada deste, Veronica, Adrian suicida-se. Para os amigos, a sua morte surge “mais paradigmática do que ‘trágica’”, uma espécie de afastamento rápido, “cravado no tempo e na história”.
Passam quatro décadas e abre-se a segunda parte do romance. Tony tem cerca de 60 anos, uma reforma simpática de um emprego inócuo como administrativo, uma filha, dois netos e uma ex-mulher com quem ainda se dá, Margaret (a mulher transparente em oposição à mulher misteriosa que fora Veronica). Antes de nos relatar que acaba de receber uma carta a informá-lo de que a falecida mãe de Veronica lhe deixou por herança quinhentas libras e o diário de Adrian, Tony recorda uma frase muito citada pelo velho amigo de escola: “A história é essa certeza que se produz no ponto em que as imperfeições da memória se cruzam com as insuficiências da documentação.” É nela que reside a chave d’O Sentido do Fim.
Julian Barnes sempre afirmou que os seus livros “contam uma história que conta a verdade”. Agora, interessa-lhe o tempo pessoal, “que é o tempo verdadeiro”, “medido na nossa relação com a memória”. Até perceber de facto esta acepção, Tony busca infrutiferamente o tempo perdido e busca corrigi-lo. O jogo de Barnes, meticulosamente planeado, é o de fazer prova literária da convicção juvenil de Tony de que “o romance trata do carácter revelado ao longo do tempo”. Em O Sentido do Fim, a revelação é estrategicamente confessional, retrospetiva e inconclusiva. O diário de Adrian poderia ser a confirmação, o testemunho, “desfazer as banais reiterações da memória”, mas dele, nós e Tony, só viremos a conhecer fragmentos. Resta-nos acompanhar a revisão do passado no presente levada a cabo por Tony. Acompanhá-lo no choque agitado entre a essência humanamente insegura e imprecisa e os paradoxos do tempo; afinal, a verdadeira matéria literária. “O carácter revela-se com o tempo? Nos romances, é claro. Mas na vida? Às vezes fico a pensar.” Seguimos de braço dado". 

Trecho do artigo de Filipa Melo - Revista Ler

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