julho 15, 2012

Garimpando amores


"Mas quer saber? - disse ele de repente, saltando fora da tristeza em que estava chafurdado. - No mês que vem vou à província de Oriente e trago um pepillo.
Quase caí, não das nuvens, mas da amurada onde estávamos sentados, frente ao mar do Caribe, naquele fim de tarde em Havana, enquanto ondas musculosas esmurravam pedras lá embaixo, saltando às vezes para esparramar-se entre os carros no Malecón. Pepillo quer dizer garoto, e o que Reinaldo estava me contando é que ia pegar 1.000 km de estrada até Santiago de Cuba, no outro extremo da ilha, e de lá trazer algum do seu agrado. Como quem vai ao Vale do Jequitinhonha atrás daquelas noivas de barro. Seria a província de Oriente um criatório de pepillos, um pesque-pague, um delivery de corpos juvenis?
Estávamos na década de 80 e o domingo, já irremediável, caminhava para aquele momento em que, no Brasil de então, a musiquinha do programa dos Trapalhões antecipava em nossas almas a sombra da segunda-feira. E Reinaldo era todo segunda-feira. Estava de luto. Dois dias antes, Carlito, seu jovem companheiro (su compromiso, se diz em Cuba, para não macular o sacrossanto significado que a Revolução deu à palavra compañero), tinha sido convocado para a guerra em Angola. Na melhor das hipóteses, dois anos em armas do outro lado do Atlântico, em nome da solidariedade internacional dos povos.
Dava para entender o que sentia o cinquentão Reinaldo. Uns 15 anos antes, a estrepitosa exposição de sua vida íntima, patrocinada por mexericos cívicos de um vizinho, lhe custara o emprego na burocracia estatal, e precipitara o outrora poderoso economista numa rampa ensaboada rumo a infortúnios que pareciam não ter fim. Escândalo, processo, ano e meio de confinamento num campo de reeducação.
Finalmente devolvido à, digamos, liberdade, deu trabalho conseguir trabalho. Tudo o que o Estado concedeu ao decaído foi uma sucessão de empregos de importância cada vez mais pífia - o mais recente deles, não isento de ironia, numa fábrica de espelhos. Das antigas mordomias, só não lhe confiscaram o idoso carro espanhol que no auge do prestígio recebera zero km, e que na altura daquele nosso papo se achava convertido numa lata velha que era preciso empurrar a cada nova partida.
Ao cabo de tanto solavanco, Reinaldo ultimamente se dizia feliz, acreditando-se ancorado numa zona de calmaria, quem sabe vitalícia. Seus infortúnios tinham agora como contrapeso o amor e os hormônios em brasa de Carlito - pepillo, pepita que a carência de Reinaldo tinha ido faiscar nas lavras da província de Oriente.
Foi o que ele me contou naquela tarde. Contou também que estava longe de ser um garimpeiro solitário - e me abriu os meandros desse tráfico subterrâneo, expediente nada raro entre os que precisam viabilizar uma sexualidade não majoritária sob um regime já rotulado por alguém de machista-leninista.
Recurso de sobrevivência, disse Reinaldo, e senti que não dramatizava. Eu próprio, numa reportagem anos mais tarde, falei de estratagemas que o cubano inventa para seguir vivendo - da maionese sem ovo à criação de porco em apartamento. Por que a criatividade dos ilhéus haveria de apagar-se no incontornável território do amor e do sexo?
Em qualquer parte do mundo, o jovem da província que sonha com vida menos acanhada pode, para transplantar-se, recorrer à pensão da Dona Maria, a um canto sobrante em casa de amigo generoso. Ocorre que em Cuba não tem pensão da Dona Maria, e o amigo, por generoso que seja, em geral mora espremido na sua cajita de fósforos.
É onde entra o maricón maduro que tenha seu cafofo, no qual de bom grado pode instalar um pepillo interiorano maior de idade disposto a encarar vivências que serão transitórias ou não. Ninguém explora ninguém, me garantiu Reinaldo, o arranjo convém às duas partes. O déficit de moradias, quem diria, conspira em favor de comportamentos menos ortodoxos. À fome se junta... - bem, melhor ficar por aqui.

(Ah, o Reinaldo? Sua incursão ao Oriente foi bem sucedida. O carro acabou, mas não o novo amor. Quanto a Carlito, soube que voltou de Angola, casou, é pai e trabalha de garçom.)

HUMBERTO WERNECK

2 comentários:

Anônimo disse...

Bom e escrito com humor. Bjs
Lalá

Anônimo disse...

http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/grito_logo_existo.pdf