maio 11, 2012

Por amor ao pai


"Numa pequena vila rural no sul da Dinamarca, na região da Jutlândia, vive o pequeno Allan, de 11 anos de idade - o narrador de “A Arte de Chorar em Coro”, romance de estreia (originalmente publicado em 2002) do dramaturgo e escritor dinamarquês Erling Jepsen (n. 1956). A acção decorre num ano indeterminado do final da década de 60, presume-se por algumas das descrições. Allan, que tem como heróis o anjo Gabriel e o Tarzan (uma espécie de “arcanjo moderno”) - penduradas na cabeceira da cama tem duas pagelas, uma de cada um dos protectores -, vive com os pais e a irmã de 14 anos, Sanne. A pequena mercearia da família está ameaçada pelo declínio económico provocado pelo novo supermercado. O pai de Allan “sabe tudo sobre palavras”. E ele admira-o por isso, por essa espécie de poder encantatório que emociona os outros. “Costuma dizer algumas palavras sempre que morre algum conhecido nosso, e também fala nos casamentos, nos aniversários importantes e essas coisas, mas toda a gente diz que se sai melhor quando morre alguém. (...) é capaz de chegar ao coração das pessoas com poucas palavras simples, e fazer chorar toda a gente.” (p. 27) Depois das inflamadas elegias junto à cova onde o caixão vai ser descido para o eterno repouso do morto, e durante uns tempos, a afluência de pessoas à mercearia aumenta, em especial dos “missionistas” (seguidores de um movimento luterano conservador). Mas num lugar tão pequeno há alturas em que os mortos rareiam e a popularidade do pai acaba por decair, o que não é nada bom para o comércio... Chegam a ir a funerais de pessoas que nem conheciam bem.
Também em casa é apurada a “arte de chorar em coro”: muitos dos serões da família são passados a cantar êxitos antigos, tristes e comovedores, e não raramente os quatro acabam a noite a chorar de emoção, consolados. Mas há serões diferentes, aqueles em que Sanne sai à noite, para ir a festas, e volta tarde (consta que namora com Frisk, o filho do “merceeiro da concorrência”), trajando o vestido curto que o pai a proibira de usar na rua, “mas não em casa”, como ela faz notar numa noite de briga, ao que o pai responde: “sabes muito bem porquê” (p. 62). O pai costuma esperar por ela deitado no sofá vermelho do andar de baixo. Quando ela chega tarde e de vestido curto, ele zanga-se, grita, rasga a camisa que veste. Mas Sanne logo o acalma e aceita dormir com ele no sofá... A mãe dorme essas noites no quarto do casal, no andar de cima... Na sua ingenuidade, Allan acha as outras famílias estranhas. Mas há ainda o irmão mais velho, Asger, que estuda na cidade para ser arquitecto e que muito de vez em quando visita a casa. É ele quem se apercebe de que algo estranho está a acontecer. Mas quando volta para a cidade, Allan, numa espécie de repentina lucidez, chega a dizer-lhe: “Não aguento mais, tenho de sair daqui. Posso morar contigo?” (p. 67)
Este brilhante romance do dinamarquês Erling Jepsen, com toda a sua crueldade e ternura, compaixão e repulsão, é uma crítica ferocíssima a um mundo pervertido, à hipocrisia e à violência que por vezes, dissimuladas sob diferentes formas, incluindo a de ritos religiosos, se escondem na seriedade da instituição familiar. A história, por vezes de um naturalismo grotesco, contada pela voz ingénua de uma criança - mas de que, ao mesmo tempo, não está ausente um olhar perturbado e perturbante - vai descrevendo a monstruosidade sem a perceber, levada por uma espécie de amor cego (ou de fé) pelo pai.
Apesar de este ser o “primeiro romance” de Jepsen, percebe-se que o autor domina com mão de mestre as formas canónicas da narração (a sua estreia na escrita dramática aconteceu quase duas décadas antes). Ao escolher para narrador, arriscando muito, uma “voz” e uma “linguagem” ingénuas (das quais nunca se desvia), no sentido de ser “amoral”, Jepsen fá-lo de maneira a que estas funcionem como o contraponto necessário para uma dramática história familiar com traços de comédia negra (são vários os momentos de humor negro). Ao abordar temas como o incesto, os maus-tratos infantis, a suposta “doença mental”, a cobardia do pai e a aceitação dos factos pela mãe, Erling Jepsen (já o confessou em entrevistas) não quer esconder a “verdade biográfica” que existe por trás.
José Riço Direitinho 

Nota: Leia a crítica no Ipsilon e veja o filme aqui   ou a  sinopse e primeiras-paginas

2 comentários:

Anônimo disse...

Deve ser interessante e ao mesmo tempo assustador!

Anônimo disse...

Deve ser interessante e ao mesmo tempo assustador!