fevereiro 29, 2012

Sobre a saudade de Paraty

"Tenho saudade de Paraty. Acontece que saudade não é só do lugar. É daqueles com quem você estava, da comida, do clima, da época da vida. São coisas que, passadas, não voltam mais do mesmo jeito. Pode-se até ter saudade de outra configuração, mas cada uma é uma.
A primeira saudade é a do mar, gosto mais de água que de terra, infinitamente mais. O azul esverdeado, porque o mar e o morro se juntam em Paraty, se enroscam, as árvores chegam a pender carregadas de cigarras até encostar no mar e se oferecem aos micos-leões-dourados para que pulem nos galhos junto da água pedindo comida aos barcos.
Há certo luxo no brilho dos peixes, na proximidade deles, são alienígenas, de corpo escorregadio, não se parecem nem um pouco com as galinhas. A sororoca é quase um poema, um dos desenhos mais bem proporcionados que já vi. Ela vai saindo do mar e começa a perder o viço, cuspindo sardinhas, batendo o rabo, as bolas coloridas do corpo sombreando, a prata virando chumbo.
Mas as manhãs na simplicidade total de uma casa caipira também têm lá seu valor. Às vezes, a horta está envolta em nuvens, você pode inventar de catar couve e, convenhamos, catar couve nas nuvens não é lá para todo o mundo. As pimentas também são um excesso, dão de verde a rosadas, acabando nas pretas e cada ano mudam seu calor, inventam de ser mais ardidas ou menos, pimentas sem padrão.
Os marrecos por si sós são uma coisa tão bonita, nadando no riacho, que realmente deve ser maldade comê-los quando as asas se cruzam, pingando água ou suco de mexerica do Rio, até ficarem macios.
O feijão catado lá não se parece com nenhum outro, a mandioca é das melhores, a farinha branca carregada num saco de aniagem é muito fina, gruda no céu da boca.
Se se planta um quiabo, ele vira praga, uma insensatez. Paraty tem uma vocação para a pobreza. A pobreza orna mais com a cidade do que a opulência, pode-se até tentar, mas o âmago é pobre, é ascético.
Se não tiver galinha solta, para mim não é sítio. As galinhas têm o dom de construir a simplicidade. Pode-se inventar a casa mais moderna nos seus vidros, o colonial mais rebuscado nos seus santos, mas, quando a galinha chega, não há frescura que aguente. Volta-se ao ovo e ao essencial. A galinha não tem vergonha de ser tão pobre no seu canto e nas suas penas, ela simplesmente está pouco se lixando.
Num lugar em que haja galinhas, pode-se fazer de almoço um arroz bem solto, um feijão grosso, uma couve fina, tem que ser bem fina ou rasgada, tudo fica harmônico, a galinha nunca pode estar perto de um prato sofisticado porque o prato perde a pose. A galinha não perde porque não tem pose a perder.
...
Assisti a um documentário sobre Barcelona e, na praia escura e feia, havia uma velha de coque branco, sentada na quebrada das ondas, olhando o infinito de peito nu.
O mar vinha e refrescava suas pernas com a espuma gelada e ela, olhando para a frente, não estava nem aí para aqueles peitos caídos. Era uma coisa que eu ainda queria fazer, uma sensação muito boa, "me ne freggo", parecia dizer, muda."
NINA HORTA

Nenhum comentário: