fevereiro 29, 2012

Hugo Cabret

"Quando eu estava no ginásio, fazia-se de vez em quando um esforço para interessar os alunos pelo teatro. Certa vez, a escola alugou um ônibus, e fomos bem cedo de manhã para uma apresentação especial de uma comédia de Molière.
Logo na saída do ônibus, os professores pediram a atenção da classe -que, naqueles tempos, tinha até caprichado um pouco mais nas roupas. Aliás, é o que se faz até hoje no teatro; a tendência é sempre achar que se está participando de uma ocasião especial.
O professor de matemática, ou de geografia, não me lembro bem -era um dos que nos inspiravam terror-, exigiu silêncio. Tinha algo importante a dizer e tirou do bolso um papelzinho. Leu o endereço do teatro.
"Alguém sabe onde fica?" Nem o motorista, nem ele, muito menos nós, fazia a menor ideia. Tanta humildade, da parte de um notório carrasco, sem dúvida indicava que mesmo para ele algo de sério e desconhecido estava para acontecer.
Diante da cultura, o professor se encolhera; o medo de parecer ignorante, que ele sabia manipular tão bem nos alunos, abatera-se sobre seu ego; o palco das atenções já não lhe era mais disponível: outros tartufos, sabichões, avarentos e doentes imaginários ocupariam a cena.
Outra professora, que também acompanhava a excursão, não enfrentava o fantasma da ignorância, mas sim o da pobreza.
Maquiara-se, portanto, e providenciara uma peruca (estavam na moda aí por 1972) para colocar-se à altura do espetáculo.
Terminou batendo a cabeça contra o vidro temperado da bilheteria, tal o empurra-empurra daqueles jovens cultores de Tália (a musa grega da comédia), que de resto não emprestou sorrisos à mestra acidentada. Lembro tudo isso porque hoje em dia -quanto ao teatro não sei- tomo conhecimento de que escolas em São Paulo programam visitas de seus alunos ao cinema.
As salas de exibição, antes refúgio dos gazeteiros, tornam-se parada obrigatória do currículo. Não que as crianças não vejam filmes sem parar, na televisão ou no computador. Ou que não queiram assistir ao último blockbuster em 3D.
Mas a visita "presencial" ao cinema serve para duas coisas: impor-lhes algum respeito ritual à arte, em seu lugar de culto, e obrigá-las a conhecer obras que não pegariam na locadora. Nada contra. Mas não deixa de ser sinal de que o cinema vai seguindo o caminho do teatro e da literatura: importantíssimo para quem gosta, objeto de distância para os demais. Cultura, enfim.
Já escrevi aqui a propósito de "O Artista", vencedor das principais categorias do Oscar deste ano. Faltou acrescentar o caso de "A Invenção de Hugo Cabret", de Martin Scorsese, que saiu com merecidos prêmios para a fotografia e a direção de arte.
Nos dois filmes, sente-se o mesmo clima de elegia. "O Artista" refaz o estilo do cinema mudo, como se fosse possível manter o antigo poder que o cinema tinha para construir uma realidade a partir do nada.
"A Invenção de Hugo Cabret" vive o mesmo drama, só que de forma mais ambígua e dilacerada. Começa como um filme de aventuras para garotos, tendo como protagonista um órfão corajoso e genial.
Da metade para o fim, seu foco muda para o drama de um pioneiro do cinema (Georges Méliès), primeiro esquecido e depois recuperado para a fama, como as poucas películas que restaram de sua obra.
Do ponto de vista dramático, cinematográfico e de faixa etária, "Hugo Cabret" fica numa espécie de limbo: é um produto de alta tecnologia, com técnicas de animação inclusive, e um elogio da pureza muda do passado.
Parece ser para crianças, mas estas se desinteressam ao longo do filme, sendo então preciso recorrer a uma perseguição final para que as emoções entrem novamente nos trilhos. O menino órfão se esconde nas maravilhosas engrenagens de um relógio de estação ferroviária, na Paris de 1920, e se transforma numa espécie de Anakin Skywalker montando um robô que lhe irá revelar a última mensagem do pai morto.
A mensagem não vem como esperamos; os mortos não ressuscitam. Ressuscitam os filmes de
Méliès, entretanto: é a técnica salvando a técnica, o talento salvando o talento, enquanto enormes engrenagens, que podem ser de um relógio ou de uma sala de projeção, continuam a rodar.
E, de nossa parte, continuamos batendo a cabeça no vidro da bilheteria, como moscas, a quem esqueceram de indicar o caminho da saída".
MARCELO COELHO
Nota: Sobre o filme leia aqui e  sobre o livro  saiba mais 

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