fevereiro 26, 2012

No rastro da Dama de Vermelho

"Na carta recebida em janeiro de 1915, veio a notícia, de retroativa amargura. Um colega avistara a grande paixão de juventude de Getúlio Vargas -a moça a quem este sempre se referira apenas pelo codinome Dama de Vermelho- passar à sua frente, na calçada, de braços dados com o marido. "Fiquei ali algum tempo a esperar que tu aparecesses do outro lado da rua, com o indefectível charuto nos beiços", escreveu João Neves da Fontoura, então amigo (e futuro desafeto) de Getúlio.
Nos tempos da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, um jovem Getúlio, ainda de bigodinho de pontas retorcidas como as de um valete de espadas, ardera de amores pela moça. À época, escrevera na revista da faculdade um texto com fumaças de erudição, no qual empilhava referências a Baudelaire, Goethe, Michelet, Mirabeau e Schopenhauer, sob o pretexto de analisar a representação da figura feminina na literatura e na filosofia. O artigo, assinado com o pseudônimo Adherbal, era na verdade uma declaração de amor à Dama de Vermelho.
"Há música nos seus passos", garantia Getúlio a respeito da amada, no ensaio para a publicação estudantil. "As linhas de seu corpo imprimem no espaço formas radiosas de uma estética perfeita."
O biógrafo é um obsessivo. Pode passar meses na busca de uma informação que, no texto final-como foi neste caso-, talvez não venha a ocupar mais do que meia página da biografia. Mesmo assim, se desdobrará em mil para obtê-la. Por mais irrelevante que a informação possa parecer, fica a comichão da curiosidade, a sede do achado, a volúpia da descoberta.
Na vasta correspondência ativa e passiva deixada por Getúlio Vargas, a tal Dama de Vermelho é figura recorrente dos anos de formação do futuro presidente da República, sempre descrita pelo sugestivo codinome. Desse modo, era preciso identificá-la, descobri-la, desvendá-la.
O caso ganhava algum relevo pelo fato de a mesma carta enviada a Getúlio por João Neves cometer uma indiscrição: "Nenhum de nós casou com quem pensava amar". Àquela altura, Getúlio já estava casado com Darcy Sarmanho, por força de conveniências mais políticas do que afetivas, conforme outras cartas do arquivo do biografado comprovam.
A única pista era a de que a misteriosa Dama de Vermelho casara com um telegrafista e se chamava Alzira (como, aliás, viria a ser batizada uma das filhas de Getúlio e Darcy; ao que consta não em homenagem à misteriosa musa escarlate, mas em tributo à avó materna).
Em consulta a velhos exemplares do "Diário Oficial da União", deparei-me com a informação de que uma certa Alzira Prestes, em 1936, requereu pensão ao governo federal pela ocasião da morte do marido, o telegrafista Alfredo de Carvalho Soares. Em seguida, uma varredura minuciosa nos registros de óbitos nos cartórios de Porto Alegre levou-me ao jazigo do casal, ao fim de algumas semanas, no Cemitério São Miguel e Almas.
O sepulcro estava semiabandonado e, nos livros do cemitério, a referência aos responsáveis pela tumba remetia aos filhos de Alzira e Alfredo, também mortos. Com a ajuda da lista telefônica da capital gaúcha, após inúmeras ligações para pessoas com sobrenome Carvalho, Prestes ou Soares, cheguei aos netos da Dama de Vermelho.
Uma foto do álbum familiar revelou-me enfim a imagem das tais "carnes triunfais, vazadas em molde impecável de deusa pagã", conforme descrevera o próprio Adherbal, ou melhor, Getúlio.
"Bem que diziam que o Getúlio tinha uma queda pela vovó", sorriu um dos netos, ao apontar uma rechonchudinha Alzira, posando para as lentes do Atelier Barbeitos, na imagem datada de 1913.
Getúlio ainda teria muitos outros amores, todos protegidos sob a discrição dos codinomes. O mais célebre seria a Bem Amada, aquela com quem dividiu os lençóis horas antes de decretar o Estado Novo, em 1937. À tarde, entregou-se aos braços da amante. À noite, oficializou a ditadura no país".

Nota: Depois de escrever a biografia de Padre Cícero, Lira Neto está Decifrando Getúlio.

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