janeiro 07, 2012

Exercício de finitude II

PREPARANDO A CREMAÇÃO

1

Levanto-me. Vou ao cartório

autorizar minha cremação. Autorizar

que transformem

minhas vísceras, sonhos e sangue

em ficção.

O que pode haver

de mais radical?

Assinar este papel

tão simples

tão fatal.

Autorizar a solução final

de todos os poemas.

2

Faz um belo dia. Do terraço

vejo o mar:

pescadores cercam um cardume

banhistas seguem

se expondo à vida, ao sol.

Olho a trepadeira de jasmim

os vasos de begônia e gerânios

margaridas brancas e a azaleia:

- a vida continua viva dentro

e ao redor de mim.

Poetas antes e depois de Homero

tentaram cantar a morte.

(Nos consolaram).

Hamlet (cioso)

dialogou com uma caveira

de antemão.

Olho cada parte de meu corpo

que vai se desintegrar:

mexo os dedos, vejo as veias

e no espelho esse olhar

que nada mais verá.

Irei à praia daqui a pouco

mas antes passarei pelo cartório.

3

Há muito venho me preparando

me despedindo do sorriso da mulher, das filhas

da rua onde diariamente passo

me despregando dos livros

vizinhos e paisagens.

Não sou só eu. Minha mulher

antes de mim no mesmo cartório foi

e ainda mostrou-me o documento.

Olho-a neste terraço: lá está ela, viva!

ligada nas plantas e planos. Olho-a:

acabou de fazer um vestido novo.

Como imaginá-la no jamais?

Ao lado, o barulho de um túnel que estão cavando:

- é a nova estação do metrô.

Há um alarido de crianças na escola vizinha

e eu saio

numa esplêndida manhã de sol

para cuidar de minhas cinzas.

Tenho muito que dialogar com a morte

e a vida ainda.
Affonso Romano de Sant"Anna

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