PREPARANDO A CREMAÇÃO
1
Levanto-me. Vou ao cartório
autorizar minha cremação. Autorizar
que transformem
minhas vísceras, sonhos e sangue
em ficção.
O que pode haver
de mais radical?
Assinar este papel
tão simples
tão fatal.
Autorizar a solução final
de todos os poemas.
2
Faz um belo dia. Do terraço
vejo o mar:
pescadores cercam um cardume
banhistas seguem
se expondo à vida, ao sol.
Olho a trepadeira de jasmim
os vasos de begônia e gerânios
margaridas brancas e a azaleia:
- a vida continua viva dentro
e ao redor de mim.
Poetas antes e depois de Homero
tentaram cantar a morte.
(Nos consolaram).
Hamlet (cioso)
dialogou com uma caveira
de antemão.
Olho cada parte de meu corpo
que vai se desintegrar:
mexo os dedos, vejo as veias
e no espelho esse olhar
que nada mais verá.
Irei à praia daqui a pouco
mas antes passarei pelo cartório.
3
Há muito venho me preparando
me despedindo do sorriso da mulher, das filhas
da rua onde diariamente passo
me despregando dos livros
vizinhos e paisagens.
Não sou só eu. Minha mulher
antes de mim no mesmo cartório foi
e ainda mostrou-me o documento.
Olho-a neste terraço: lá está ela, viva!
ligada nas plantas e planos. Olho-a:
acabou de fazer um vestido novo.
Como imaginá-la no jamais?
Ao lado, o barulho de um túnel que estão cavando:
- é a nova estação do metrô.
Há um alarido de crianças na escola vizinha
e eu saio
numa esplêndida manhã de sol
para cuidar de minhas cinzas.
Tenho muito que dialogar com a morte
e a vida ainda.
Affonso Romano de Sant"Anna
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