janeiro 07, 2012

Exercício de finitude I

"Parem de jogar cadáveres na minha porta.

Tenho que sair - respirar.

Estou seguindo para os jardins de Allambra

a ouvir o que diz a água daquelas fontes

e acompanhar o desenho imperturbável dos zeliges.

Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.

Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto

e de semear pregos por onde passo.

Estou em Essauíra, na costa do Marrocos

olhando o mar. Ou em Minas

contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.

Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.

Parem de atirar em minha sombra

e abocanhar meu texto.

Estou tornando a Delfos

naquela manhã de neblinas

ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.

Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi

frente ao Bósforo,

quando tentaram me esfaquear na esquina.

Jamais permitirei que quebrem as porcelanas

e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.

Não me chamem para a reunião de condomínio.

Estou nos campos da Toscana

onde a gigante mão de Deus penteia os montes

e minha alma se sente pequenina.

Dei de mão comendas e insígnias

não tenho mais que na praça erguer protestos

e distribuir esmolas não é mais a minha sina.

Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada

e me liberto

- na Cidade Proibida na China.

Não adianta o clamor de burocráticos compromissos

nem vossa ira. Tenho oito anos

saí para nadar naquele açude atrás dos morros

e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.

Parem de jogar cadáveres na minha porta

na minha mesa

na minha cama

dificultando

que alcance o corpo da mulher que amo.

Afastem de mim

o meu

o vosso cálice.

Impossível ficar no tempo que me coube

o tempo todo

preciso repousar num campo de tulipas

reaprendendo a ver o que era o mundo

antes de

como um Sísifo moderno desesperado julgar

- que o tinha que carregar.

Affonso Romano de Sant'Anna

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