janeiro 12, 2012

E todos vieram ao Rio

"Uma noite, deprimido porque a mulher, Zelda, definiu como pequeno o seu membro viril, Scott Fitzgerald, o autor de “O grande Gatsby”, pediu ajuda a Ernest Hemingway. Que o autor de “O sol também se levanta” o acompanhasse até o banheiro do bistrô Michaud’s e desse uma conferida. Hemingway analisou os dotes de Fitzgerald — os dois tinham uma amizade assim como a do Tom e Jerry — e saiu-se com um clássico da ambiguidade: “Olha, meu caro, fique sabendo que seu pau é do tamanho do seu talento literário”.
Fitzgerald, para continuarmos aqui no terreno da ambiguidade, achou que estava de bom tamanho — e não esticou um centímetro a conversa. O Rio não tem uma Geração Perdida clássica, como a que serviu de mote para Sérgio Augusto contar histórias como a do “músculo da alegria” de Fitzgerald. Ela está no seu delicioso “E todos foram para Paris” (Leya/Casa da Palavra), um guia erudito sobre os bares, hotéis, livrarias, inferninhos e banheiros onde, entre os anos 1920 e o final dos 1940, as turmas de Picasso, Henry Miller, John dos Passos, Cole Porter, Man Ray e os dois malucos já citados fizeram arte de todo tipo e tamanho.
Era um elenco formidável aprontando em cenários que, a partir dali, ficariam famosos, como o American Club. Ali, numa noite sem literatura, Ernest “sempre ele” Hemingway apanhou muito numa luta de boxe com o escritor canadense Morley Callaghan. Paris era uma festa de charme intelectual, e agora os brasileiros poderão percorrê-la com o guia de Sérgio Augusto apontando cada fantasma. Olha ali o Faulkner nos Jardins de Luxemburgo. Olha o Papa Hemingway atracado com um dry Martini no bar do Ritz.
Eu acho que não fará feio quem lançar um guia turístico do Rio com a mesma ideia, um flâneur-narrador mostrando a cidade aos turistas a partir dos lugares onde nossas “gerações perdidas” de artistas e intelectuais também fizeram suas artes. Uma noite, em pleno Beco das Garrafas, em Copacabana, Ronaldo Bôscoli colocou para fora o seu também membro viril, que de “Lobo Bobo” não tinha nada, e, sem qualquer dúvida sobre a generosidade com que o Criador havia lhe aquinhoado — era o maior namorador da bossa nova —, mijou nos pés de Antonio Maria, seu desafeto das letras tristes do samba canção.
Temos histórias, personagens, um cenário que é uma beleza e uma multidão cada vez maior de turistas andando de um lado para o outro, carente de algo além da moça do corpo dourado do sol de Ipanema. Já a viram em outras viagens. Se todos foram para Paris no início do século passado, como anuncia Sérgio Augusto, desta vez estão vindo todos ao Rio. Depois de um mergulho no Posto 9 onde Leila Diniz chocou o país indo à praia grávida, sem a bata cobrindo o barrigão, os turistas gostariam de seguir os passos históricos dos criadores do charme carioca. Que tal dar um pulo até o número 2.853 da Avenida Atlântica? O edifício, informa o porteiro, continua igual àquele por onde, no final dos anos 1950, João Gilberto entrava com o violão para ir até o apartamento 303 e tocar com os amigos da proprietária, a ainda não cantora Nara Leão.
A bossa nova começou ali, e só uma cidade com um roteiro turístico muito óbvio como o Rio ainda não percebeu que era para ter uma multidão de japoneses fotografando o prédio de Nara, berço da bossa nova. Um provocador, como o assaz citado Ronaldo Bôscoli, perguntaria: se há milhares de fiéis neste momento na Igreja da Natividade, em Belém, por que não naquele trecho da Atlântica, onde nasceu uma cultura de sucesso no mundo inteiro?
Tivemos grandes “gerações perdidas” em todas as décadas. Nos anos 1910, João do Rio e os dândis literários não saíam da Colombo. Nos anos 1920, Noel Rosa e os novos sambistas dormiam no Café Nice da Rio Branco. Nos anos 1930, Di Cavalcanti arregimentava suas mulatas pela Lapa.
Todos esses cenários ainda estão por aí. Alguns mais bem conservados, outros ilustrados apenas pela aparição de seus fantasmas, mas nada muito diferente de Paris, que desapareceu com vários dos endereços clássicos da sua Geração Perdida.
Esses marcos da civilização carioca, um ícone cada vez mais na moda internacional, estão ávidos de quem queira apontá-los aos turistas e narrar outras histórias além daquelas sobre as dificuldades da construção do Cristo no alto do Corcovado.
O turismo de uma cidade não vive só da beleza natural dela, da arquitetura de seus prédios e eventos. Temos tudo isso aos montes, mas também um roteiro espetacular de referências criadas a partir de uma fauna intelectualmente charmosa e que está na cabeça do mundo.
“E todos vieram para o Rio” seria o nome do guia. E, chegados aqui, os turistas foram, por exemplo, ao bar Villarino, no Centro, conhecer a famosa mesa onde, entre os anos 1950 e 1960, Paulo Mendes Campos, Ary Barroso, Di Cavalcanti e outros se reuniam para dar uma geral na vida alheia e avaliar as mulheres no mercado. Ainda se serve ali uma boa refeição ligeira e há na parede uma foto imensa do grupo conversando. Naquela mesa do canto, ao cair de uma tarde de 1956, o jornalista Lúcio Rangel apresentou Tom Jobim a Vinicius de Moraes. O resto da história qualquer turista japonês conhece de cor — e gostaria de ir até ali tirar uma foto de recordação". 
Joaquim Ferreira dos Santos

Nota: A ilustração é a capa do livro e o passaporte de Hemingway. Link no título para mais...

Nenhum comentário: