janeiro 29, 2012

A Brincadeira Favorita

"Dos sete aos 11 é um grande pedaço da vida, cheio de tédio e esquecimento. Dizem que lentamente vamos perdendo o dom de falar com os bichos, que os pássaros já não visitam nossa janela para conversar. Conforme os olhos vão se acostumando a ver, blindam-se contra a fantasia. Flores que eram do tamanho de um pinheiro voltam para os vasos de barro. Até o terror diminui. Gigantas e gigantes do quarto de infância encolhem-se em professoras chatas e pais piedosos. Breavman havia esquecido tudo o que aprendera com o pequeno corpo de Lisa.
Oh, como a vida deles havia se esvaziado desde o tempo em que engatinhavam sob a cama até se levantarem nas patas de trás!
Agora ansiavam por conhecimento, mas se despir era um pecado. Tornaram-se assim presa fácil de postais, revistas pornográficas, artigos eróticos caseiros trocados no vestiário da escola. Tornaram-se connoisseurs de escultura e pintura. Conheciam todos os livros da biblioteca que traziam as melhores reproduções, as mais reveladoras.
Como seria a aparência dos corpos?
A mãe de Lisa dera de presente à filha um livro a respeito, onde procuraram em vão informações mais diretas. Havia frases como "o templo do corpo humano", o que podia ser verdade, mas onde estavam os pelos e as reentrâncias? Desejavam imagens claras, não uma página em branco com um ponto no centro e uma legenda desanimadora: "Imagine só! O espermatozoide masculino é mil vezes menor do que isto".
Sendo assim, usavam roupas leves. Ele tinha uma bermuda verde que ela adorava por ser fina. Ela tinha um vestido amarelo que era o favorito dele. Essa situação deu origem à grande exclamação lírica de Lisa:
"Amanhã você põe a sua bermuda verde de seda; eu venho com meu vestido amarelo, assim vai ser melhor."
A privação é a mãe da poesia.
Ele estava prestes a encomendar pelo correio uma publicação anunciada numa revista de cartas eróticas que prometia a entrega em papel pardo, discreto, quando, durante uma das buscas periódicas nas gavetas da empregada, encontrou o minicine de cartucho.
Era feito na França e continha pouco mais de meio metro de filme. Você segurava contra a luz, girava um botão e via tudo.
Louvado seja este filme, que desapareceu com a empregada na vastidão da paisagem canadense.
O título estava em inglês, com cativante simplicidade, "Trinta Maneiras de Foder". As cenas não se pareciam nada com os filmes pornográficos de que Breavman mais tarde teria conhecimento e os quais devoraria, com homens e mulheres acrobáticos encenando enredos forçados e sórdidos.
Os atores eram belos seres humanos, felizes com a carreira no cinema. Não eram refugos esquálidos, culpados, desesperadamente alegres que interpretavam para um público de clube masculino. Nada de sorrisos lascivos para a câmera, nem piscadelas e lamber de beiços, nenhum abuso do órgão feminino com cigarros ou garrafas de cerveja, nenhuma disposição engenhosa e artificial dos corpos.
Cada quadro reluzia de ternura e deleite apaixonado.
Este pequeno trecho de filme, se amplamente exibido nos cinemas canadenses, seria capaz de revitalizar os casamentos tediosos que, dizem, abundam em nosso país.
Onde está você, operária do dispositivo supremo? O National Film Board precisa de você. Envelhecendo em Winnipeg?
O filme terminava com uma demonstração da grandiosa, democrática e universal prática do amor físico. Havia casais indianos, chineses, negros e árabes, todos sem os trajes típicos.
Volta, empregada, em nome do Federalismo Mundial.
Apontavam o minicine para a janela e solenemente o passavam para trás e para frente.
Sabiam que seria daquele jeito.
A janela dava para a colina do Murray Park, do outro lado do centro comercial da cidade, rio St. Lawrence abaixo, com as montanhas americanas lá longe. Quando não era sua vez, Breavman olhava a vista. Por que ninguém estava trabalhando?
Havia duas crianças abraçadas numa janela, cuja sabedoria tirava-lhes o fôlego.
Não podiam se afobar e fazer aquilo ali naquela hora. Não estavam livres de intrusos. E não era só isso, crianças possuem um sentido altamente desenvolvido de ritual e formalidade. Era importante. Precisavam decidir se estavam mesmo apaixonados. Porque uma coisa as imagens mostravam: era preciso estar amando. Achavam que estavam, mas se dariam uma semana para ter certeza.
Abraçaram-se de novo, no que pensaram ser um dos últimos abraços totalmente vestidos.
Como Breavman poderia se lamentar? Foi a própria natureza que interveio.
Três dias antes da quinta, dia de folga da empregada, encontraram-se no lugar marcado, o banco ao lado do lago no parque. Lisa estava tímida, mas resolvida a ser direta e franca, como era de seu temperamento.
"Não posso fazer isso com você."
"Seus pais não vão se mudar?"
"Não é isso. Ontem à noite veio A Regra."
Ela tocou a mão dele com orgulho.
"Oh."
"Sabe o que é?"
"Claro."
Ele não fazia a mais remota ideia.
"Mas mesmo assim seria tudo bem, não?"
"Só que agora eu posso ter neném. A minha mãe me contou ontem à noite. Ela já estava com tudo pronto para mim, toalhas, uma cinta só minha, tudo."
"Sério?"
Do que ela estava falando? Aquela regra parecia uma intervenção celeste contra o prazer dele.
"Ela me explicou a coisa toda, como no minicine."
"Você contou sobre o nosso minicine?"
Não se podia confiar em nada, no mundo inteiro, em ninguém.
"Ela jurou que não ia contar para outra pessoa."
"Era segredo."
"Não fique triste. A gente conversou bastante. Contei sobre nós também. Sabe, vou precisar me comportar como uma dama agora. As meninas precisam se comportar como mais velhas que os meninos."
"Quem está triste?"
Ela se reclinou no banco e segurou a mão dele.
"Mas você não está feliz por mim?", ela riu. "Por ter chegado A Regra? Estou feliz agora!"
Leonardo Cohen

Um comentário:

Uma certa idade... disse...

Com uma trama bem engendrada e imagens de rara beleza, Cohen demonstra em "A Brincadeira Favorita" um domínio irreparável -que a música confirmou anos depois- da palavra. Surpreende que desde tão cedo.

A BRINCADEIRA FAVORITA
AUTOR Leonard Cohen
TRADUÇÃO Alexandre Barbosa de Souza
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 39,90 (248 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo