janeiro 05, 2012

Alpendre


"A arquitetura, como toda arte, sempre caminhou pelo tempo, de um extremo a outro, do passado ao futuro mais remoto que o homem pode vislumbrar; tecendo formas, espaços, dando movimento e definindo períodos. Das nossas casas de taipa de pilão às construções high-tech, vem permeando o universo e contando a história da humanidade. Na volta ao passado, ela encontra os seus simbolismos perdidos, numa releitura de si; como os valores módicos da vida e o que nela havia de melhor. Contraponto assim, à sofisticação, aos modismos e tudo mais que tornou a vida mais turbulenta nos nossos dias. Hoje, a vida se resume e se permite ser mais prática, acelerada, racional, individualizada; tudo num invólucro e mais longe da felicidade perene, sem fragmentos, sem barreiras. E longe de ser o dono da verdade - não discordarei dos quem pensam o contrário - coloco aqui uma visão analítica de quem observa e vive este mundo maluco e agora globalizado. Nessa síntese, talvez valesse aquela máxima: “naquele tempo era melhor...”.

Os tempos são outros e o conceito de moradia também mudou. Dos bairros predominantemente residenciais, o pouco restou; com suas ruas de paralelepípedo quase sem automóvel e de gente simples morando. Hoje não nos damos mais ao luxo e o prazer de termos casa com muro baixo e portão de madeira, onde na infância brincávamos de andar sobre os muros; e de muro em muro íamos equilibrando e pulando os portões até se espatifar na calçada – já vivi essa cena. Sempre era divertida a aventura e dolorosa a queda. Da calçada, sobre o muro baixo podíamos ver a casa; dos janelões: a sala, a mobília, os ornamentos, os apetrechos, os enfeites, os retratos, os quadros, as pessoas e o modo de vida daquela família. E elas? Viam a nós, que passávamos pela rua, sozinhos no nosso caminhar ou em procissões da sexta-feira da paixão. Como se nada tivéssemos que esconder um do outro. Víamos nossos interiores, assim como ver a alma da alma.
Da casa, era do seu alpendre que avistávamos a rua e quem quer que por ali passasse. No alpendre sempre havia um lugar para uma cadeira de balanço e uma gaiola de passarinho pendurada; com muretas que circundavam, é lá que ficava o “relógio” que registrava o consumo da luz. Em alguns, havia um mosaico de azulejos portugueses na parede frontal ou um pequeno oratório no nicho lateral. Sem nos esquecer dos vasos de avencas e samambaias e o piso gelado de cimento queimado ou ladrilhos vitrificados, este, nas casas dos mais abastados.
Vamos à literatura. Alpendre é o espaço coberto, reentrante, e aberto na fachada de uma casa, que dá acesso ao interior. Pois sim, o alpendre é o próprio convite à casa: adentre-se. Diferente da varanda, que é balcão, sacada, terraço. Gradeamento de sacadas ou de janelas rasgadas ao nível do pavimento. Ou: espaço saliente à casa e fora do seu corpo - desalinhado. Em sua crônica, o escritor Mário Prata define: “Mas a diferença básica é a seguinte: você vai ficar na varanda do 16º andar para ver quem? Quem é que você acha que vai passar por ali? Você acha que vai ver alguma pinta-brava? Pessoa suspeita; cafajeste” Mais adiante ele conclui: “Agora achei a palavra certa: os alpendres foram feitos para a cobiça também”.
Nos casarões coloniais, era o alpendre que fazia a divisão da parte da casa com a área social. Os alpendres centrados dividiam de um lado a capela e do outro o quarto de hóspedes, depois a porta de acesso, por fim, a casa. Por muito tempo, eram também nos alpendres que namoravam as moças de família, as recatadas. Cujo namoro tinha que ficar às vistas do pai austero e com hora marcada para pisar porta dentro. No alpendre “batíamos figurinhas” e reuníamos os moleques da rua para brincar. Dava para jogar futebol de botão e fabricar pipas também.
E os quintais? Quanto tempo eu não ouço ninguém dizer que gostaria de uma casa com um quintal grande e de terra; sem nada, solitárias árvores e a criatividade dos olhares pequeninos. Trocaram os quintais por jogos de vídeo game e internet; e as casas térreas, por conjuntos verticais - sem quintal. Faz dois anos fiquei surpreso com uma história: quando foi indagado o que gostaria de dar a seu filho pelo seu aniversário, o ator Lázaro Ramos disse sem pestanejar: “um quintal”. Achei o máximo, tudo muito simples e talvez fosse tudo o que tenha presenciado de valor na sua infância feliz. Um quintal para brincar e um alpendre para olhar a vida passar, quiçá.
No próximo projeto de casa quero ser simplista e darei a ela um alpendre. Inserida numa paisagem, um ambiente urbano ainda preservado pela vida parca do lugar, sem agredi-lo. Uma Casa para morar, para viver e guardar os dias melhores de nossas vidas. Gosto dessa viagem ao tempo que a arquitetura me proporciona, principalmente quando ela vai ao meu interior, onde me permito encontrar uma bela paisagem e com tudo aquilo que vale à pena viver de novo: uma casa com alpendre e quintal de terra".


©Antonio de Oliveira /link no título para o blog

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente!!Voltei à minha infância. No quintal da minha avó tinha uma imensa cisterna coberta onde realizava todos meus sonhos de menina.É a "cisterna onírica", assim como a casa onírica de Bachelard.Um dia era cozinhadinho, outra dia era dona de cinema com os cartazes (do cinema do meu avô)colados com grudes que a minha avó preparava no fogão à lenha.A maior parte sozinha mesmo, no meu mundinho encantado.

Anônimo disse...

Alpendres urbanos tornaram-se local de observação da vida alheia, fonte de munição de fofoca. Andei por várias ruas de algumas cidades do Canadá, dos Estados Unidos, da Austrália, da Rússia, da Botswana, do Senegal, da Indonésia. Nestes países no geral não tem alpendre. Esta coisa de alpendre em habitações urbanas é muito comum no Brasil, principalmente construções antes da década de 2000. Pessoas de bom grau de intelecção ou espiritualmente fortes não ficam "pojando" em alpendres urbanos. Antes não queimam dinheiro construindo áreas mortas...:)