julho 20, 2011

A jarra

"Faz alguns dias, minha mulher voltou de viagem. Havia ido visitar a irmã e a sobrinha, que moram em outro país. No meio da sala, a mala escancarada ainda aguarda ser desfeita -tentativa inútil de postergar o inadiável fim das férias-, transbordando de roupas, presentes, canhotos de ingressos, revistas, papéis de embrulho. É desse heteróclito conjunto que vejo despontar a jarra de suco.
Minha primeira reação é de curiosidade: será isso mesmo o que estou vendo? Terá ela cruzado mares e continentes trazendo na bagagem uma jarra de vidro? Desembaraço-a das mangas de um moletom, retiro de seu bojo os jornais amassados que lhe garantiram a sobrevivência na longa travessia, a sustento em minhas mãos. 
É uma jarra grande, bonita. Deve caber ali um litro e meio de suco, talvez mais. Enquanto contemplo o elegante objeto em sua sólida delicadeza, sou tocado por uma dessas pequenas epifanias: que coisa curiosa é uma mulher. Que coisa incrível. 
Jamais me ocorreria comprar uma jarra de suco. A própria ideia de suco, aliás, não me surge assim tão naturalmente. Há sucos em casa, é verdade, e tomo um ou dois copos diariamente, mas o faço quase como um exercício, um esforço civilizatório. Se fosse solteiro, não creio que beberia suco. Se não existissem mulheres no mundo, o suco provavelmente jamais haveria sido inventado -teríamos ido direto do fruto à fermentação, sem escalas. 
Está provado que homens casados vivem mais. Está provado que as viúvas são mais longevas que os viúvos. Nós, machos, somos uns ogros e, não fosse a metade delicada e cheirosa da espécie, nos acabaríamos em costelinhas de porco, assistindo campeonatos de vale-tudo, de pijama e barba por fazer. Do meio da mala, contudo, a jarra emerge como o monolito em "2001: Uma Odisseia no Espaço", diante deste limitado primata: um exemplo de harmonia, uma promessa de ordem, progresso e, sobretudo, beleza. 
Não sou muito dado a discussões estéticas, confesso que sei pouco sobre questões de forma e conteúdo, mas está claro para mim que uma jarra dessas exige um suco de superior qualidade. Não ousaria conspurcar seu corpo cristalino com adocicados néctares de caixinha. 
"Baterei frutas! Espremerei laranjas!", digo alto, brandindo a jarra tal qual um colono com seu machado diante da natureza indócil, a proclamar: "Derrubarei árvores!", "Construirei diques!", "Farei desta selva uma cidade!" (A selva, evidentemente, sou eu.) Pondo a jarra sobre a pia da cozinha, logo percebo que, para honrar sua presença, não bastará o suco puro e fresco. É preciso arrumar uma bela mesa de café da manhã. É fundamental uma noite bem-dormida. Um dia ensolarado. É mister ter cortado as unhas dos pés. Vou jogar fora os copos de requeijão. Penso seriamente em começar a nadar. Eu juro, meu amor, que farei o que estiver ao meu alcance para merecer esta jarra de suco, que trouxeste de terras distantes. 
Sei que é uma batalha perdida -como todas, aliás-, mas é nesta luta que me salvarei, que todos nos salvamos, das forças funestas que nos puxam de volta para a selva, nos empurram para o bar, nos arrastam para a frente da televisão. Que beleza nossa nova jarra. Que coisa incrível é uma mulher". 


ANTONIO PRATA 

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