junho 24, 2011

Memorial de inverno

Nunca apesar, do esforço que fizera para isso, conseguira se entender. E agora, sentado na primeira fila da classe executiva, em voo da Air France para Genebra, se entendia menos ainda. Tudo acontecera mais ou menos de repente, ouvira sem querer a informação de que na Suíça haviam legalizado o suicídio assistido, garantiam que era indolor e higiênico, nada parecido com a injeção letal que era usada em alguns Estados norte-americanos para execução dos condenados à morte.
Tomara todas as providências que seriam exigidas, pagara antecipadamente quase todas as despesas, entrava na reta final, o avião decolara do Galeão, sobrevoara um pequeno trecho da cidade e ele nem olhou para baixo, poderia significar um desejo de olhar para trás.
Lembrou o início de tudo: a noite em que fora dormir aos 50 anos e acordara com 80, sua idade real. Na véspera, encontrara um amigo pela última vez, Belmiro Medeiros, que morreria dois meses depois, numa espécie de suicídio não assistido: trancou-se em seu apartamento de Ipanema, decidiu não beber mais água, nem comer, evitava dormir, não chamou ninguém, ninguém soube de nada, tomou alguns comprimidos de Seconal e esperou que tudo se desligasse dentro dele, a vida e a miséria da vida.
No último encontro, ele perguntara ao amigo o que achava de tudo, dos livros que escrevera, da vida que levava. Com aquele diabólico senso crítico, Belmiro apenas dissera: "Você vai na onda..." Alguns poucos anos se passaram e ele dava razão ao amigo. Mas não queria mais ir na onda.
Ao chegar em casa, lembrou-se que Belmiro fora o primeiro leitor de seu primeiro livro, ainda em originais. Levava a sério o amigo, que ele considerava o homem mais inteligente que conhecera até então. E Belmiro, com aquele jeito de falar pouco e deixar tudo no vazio, apenas dissera: "É um livro profético para você!"
Sabia que nada mais podia extrair do amigo. Profético por quê? Nesse dia, teve coragem de apanhar na estante o único exemplar que lhe restara desse primeiro livro, que nunca mais lera, nem mesmo quando a editora fazia reedições e mandava provas para ele. Sua secretária fazia as correções de impressão, perguntava se desejava fazer alguma alteração. Não, não queria nada, que ela apenas corrigisse os erros tipográficos.
Mas naquela noite, tantos anos passados (tinha 28 anos quando o escrevera), quis saber por que Belmiro achara o livro profético. A história era banal, dois irmãos, um deles filho bastardo, que amam a mesma mulher, os encontros e desencontros entre os três personagens. Naquele tempo ele lia o autor que estava na onda, Jean-Paul Sartre, o existencialismo entrara em coma, mas ele se identificava mais ou menos com Mathieu, o homem que descobrira estar na "idade da razão".
Por que profético? Começou a ler o que nunca relera, a edição era boa, papel importado, tipos elegantes, capa berrante mas expressiva do amigo Fernando Pamplona.
Não chegou a reler tudo. Antes mesmo da metade do livro, encontrou dois momentos que davam razão a Belmiro:
"Tomei então uma resolução repentina: envelhecer é porcaria. Um homem depois dos 50 é anti-higiênico, começa a cheirar mal, a se decompor. A velhice não é apenas feia. É porcaria no duro. Por isso eu me mataria um dia, por higiene interior, como se fosse tomar um banho. Não iria feder diante dos outros e de mim mesmo, arrastar pelas ruas e pelos caminhos um corpo a se liquefazer em lama, a enojar outros, exibindo os vermes que me comiam por dentro. Os médicos dariam nomes latinos aos vermes, mas todo mundo saberia que eram simplesmente vermes."
E mais adiante: "Já confundia as coisas que não eram mais como nunca ter sido. Nada de morrer como os comerciantes falidos e os amantes traídos. Morrer por conta própria não aporrinha ninguém. Nem os padres para as bênçãos, nem os amigos para as missas de sétimo dia". E ele só tinha 28 anos quando escrevera isso.
Nunca é tarde para um instante de lucidez. A comissária de bordo, uma francesa com cara de Michèle Morgan, lhe oferece uma taça de "Veuve Clicquot". Ele agradece e pergunta como está o tempo em Genebra". 


CARLOS HEITOR CONY 

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