maio 26, 2011

"Nós num pega os peixe"

"Um cronista de segunda não é a pessoa mais indicada para fazer coro aos cultos e juntar sua pena na crítica ao livro do MEC que autoriza a garotada a chutar a gramática de bico, de chapa, do jeito que a bola rolada por Camões se lhe ajustar melhor no pé, quer dizer, na língua.
Um cronista é um sujeito que toma certas intimidades com as camareiras que cuidam do vernáculo e depois, cotovelo no balcão, vive repetindo Mário Quintana, dizendo aos amigos que outro dia uma palavra tirou a roupa e ficou nuinha pra ele. O cronista frita um ovo com as vírgulas, que vai cortando como se fossem cebolas pelo caminho das orações. Quando algum revisor aparece pedindo mais respeito, menos anacoluto, ele aproveita o livro do MEC para escrever um bilhete se dizendo “ma-gu-a-do”. Diz que foi por aí, levando um violão, e chuta com estardalhaço o balde de aço com as normas de redação. Um cronista quer mais que o texto corra solto como um papo de botequim, como um olho vadio que se prega no rebolado de alguma dona e vai seguindo solto, pelo meio da rua, sem agregar valor ao panteão literário e muito menos tecer louvação de mérito semântico aos paralelepípedos sobrepostos pelos polissílabos proparoxítonos advindos do charivari das mesóclises.
Um cronista gosta de fingir que não tem compromissos com o certo e o errado que movem a seriedade dos artigos nas outras páginas. Anda de bermudas pelo pátio dos verbos, zoando das concordâncias de cartola que o espreitam pelas frestas das janelas, todas muito branquelas e invejosas da liberdade que ele tem em se locupletar ao sol pagão com as carnes suculentas do verbo popular.
Um cronista é um gato vadio espapaçado à sombra da varanda da Academia Brasileira de Letras. Seu compromisso é com o prazer. Ele está para o corpo do jornal como os meninos jogando as bolinhas na frente dos carros, apenas um momento de mágica enquanto o sinal não abre, e a vida séria das notícias volta a escorrer pelos vidros. De vez em quando o cronista deixa cair uma bolinha, tropeça numa crase. Não se abate. Ele deseja que todas as normas consideradas adequadas e peremptórias no uso da língua tenham uma boa afta e se explodam — mas ele não repetiria tal na frente das crianças em idade escolar.
No início era o verbo, diz a Bíblia, e ele vinha sendo conjugado com a concordância certa até que chegou essa tentativa do MEC de reescrever o apocalipse.
O bom professor sabe que primeiro você fica de pé e aprende a andar. Um pé é esticado para a frente e em seguida serve de apoio para o que ficou atrás faça o mesmo movimento de avançar. Alguém ensinou isso ao bebê Neymar, que depois cresceu, se aborreceu de caminhar sempre do mesmo jeito que o resto da Humanidade e resolveu fazer ao seu jeito. Em cima do repertório de passos gramaticalmente corretos que lhe ensinaram, inventou passadas, pedaladas, dribles e calcanhares impossíveis de serem perseguidos pelos outros — e reinventou a linguagem do futebol.
Manuel Bandeira fez as poesias mais românticas do parnasianismo para em seguida, maduro, mandar às favas os rigores das rimas e dizer que estava farto do lirismo-funcionário público. Cansado das métricas, dos sentimentos sob controle, Bandeira vestiu a camiseta do Bloco dos Modernistas e passou a pedir a liberdade de uma prise de lança-perfume no céu da boca. Pintou-se de 22. Queria a farra estupefaciente de todos os barbarismos universais.
Eu não diria isso numa sala de aula para menores de 18 anos, como estão fazendo os professores que usam o livro “Por uma vida melhor”, arauto patrocinado pelo MEC para a perversão de que não há mais certo ou errado no uso da língua, mas adequado ou inadequado. Eu calaria a ofensa. Seria abuso de menores.
A escola deve fazer a parte dela, colocar o pensamento do aluno em pé, e a melhor maneira de fazer isso é ensinar a norma, o rigor da linguagem padrão sobre o qual se constrói um país. Os bons mestres podem até sugerir como contraponto a audição do caipira italianado de Adoniram Barbosa, o sambista genial do “nós num se importa, Ernesto, mas você devia ter ponhado um recado na porta” — desde, é claro, que sublinhem o caráter humorístico dos versos e os liberem apenas aos que queiram soltar a voz na pândega de uma roda de samba.
Um cronista de segunda, apenas um gato de pelo curto brincando com as sobras do prato de semântica ensopada que lhe atiram os cultos, não é a melhor pessoa para pedir aos professores que tenham mais pudor na frente das crianças. Que acertem a língua com as necessidades nacionais de se colocarem os verbos em ordem, com a concordância certa, na cabeça de seus alunos. Ensinar compulsoriamente “nós pega o peixe”, como admite a nova cartilha lida na frente do quadro-negro, é mais pornográfico que os catecismos de Carlos Zéfiro que o cronista folheava, por livre e espontânea falta do que pensar, nos fundos da classe. Eu pediria mais pudor aos novos mestres.
Fernando Pessoa foi despedido de uma agência de publicidade ao fazer para a Coca-Cola o slogan “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Pode soar mal para um refrigerante, que precisa ser agradável desde o início, mas serve para o aprendizado da língua. Primeiro estranha-se, com a inevitável dificuldade que requer o rigor de uma boa educação. Depois entranha-se pela vida afora o imenso prazer de, sabendo as regras do jogo, brincar com o texto.
Um cronista de segunda, gato vira-lata da vida literária, mete a língua onde não é chamado e passa o dia lambendo as palavras, as cultas e as das calçadas, na frente de todo mundo. Nem aí ao que vão pensar. Gato sem dono, o cronista mostra os dentes quando querem lhe colocar a coleira da ordem vernacular. Ele quer ter a liberdade de fazer ao seu jeito. Coçar um adjetivo, morder as partes de um verbo composto, bocejar diante de um advérbio e balançar o rabo para uma expressão oral, gostosa, que não via há muito tempo na sua rua — mas ele não diria isso para crianças numa sala de aula. Mexer com a língua de um lado para o outro, principalmente para o errado, é diversão adulta."
Joaquim Ferreira dos Santos

Um comentário:

Anônimo disse...

Tenho certeza de uma coisa: esse infame livro do "meque" não passa de uma coletânea das baboseiras que o Lula dizia - e diz - com etílica voz pastosa e rouquenha, acompanhado em coro pela muda esposa com cara "pitanguizada de marta-suplício" e um magote de $$$cuequeiros$$$ de plantão. Imagine você, após toda essa "revolução CUtural" (???!!!) conseguir pôr na cabeça de universitários que o vernáculo não é aquilo que eles proclamam em suas falas e escritas? Como fazê-los aprender, além do português, o idioma alemão, o idioma grego etc., se, na vã crença em que foram lançados, não há espaço para entender que regras existem, que gramática não é metafísica "neo"petista, que o mensalão não tem o direito de vender o idioma nacional (já tão adulterado e conspurcado)? Vejo-me na sala de aula, não raro, como se estivesse ensaiando algum famoso métodode teatro. E as cortinas teimam em se abrir. E o pior: meu público quase não me entende mais.
TL