março 10, 2011

Frutos arquetípicos

"NA SEMANA passada, fui vítima de duas pequenas coisas que me deixaram encantada.
Há muito não sinto sedução por frutas como a que sentia diante de uma jaboticabeira carregada, uma mangueira dobrada sobre suas mangas maduras, um pé de lima de bico, uma goiaba temporã. A fruta da feira não é a mesma coisa, não me dá o mesmo prazer que a do pé.
Minha filha resolveu chamar uma dessas pequenas firmas que vendem produtos orgânicos. Já chamamos outras vezes, é bom, você recebe aquilo que existe e que está na época, tudo meio miúdo e enrustido, mas orgânico. Desta vez, escolheu  ..... Quem atende é Carmen, e os telefones são ....ou .....
Nem notei muito a diferença, almoço no trabalho, mas chegando, à noite, fui capaz de ver as mangas que chegaram. Eram daquelas que vulgarmente chamamos de  coquinho, pequenas, mas completamente verdes. Ainda demos risada. Essas mangas só vão amadurecer daqui a um ano, verdes demais.
Na semana seguinte, minha filha me chamou a atenção para o fato de que ainda estavam verdes, mas macias, e daria para comê-las assim. À noite, bateu-me uma fominha e fui experimentar. Nada de faca, uma mordida na ponta, a casca puxada com os dentes e a surpresa agradabilíssima. Há anos não comia nada tão bom.
Essa manga já é uma das mais deliciosas que existem. Só que tinha qualidades não suspeitadas. Sem fibras e encharcada de suco, escorrendo pelo queixo. Era, assim, o que podemos chamar de uma coisa muito gostosa, muito saborosa, mesmo, de enlevar.
Daí deu-se comigo um comportamento muito semelhante ao da infância, que é o de comer o quanto se aguenta e que sempre levava a indigestões homéricas. E fui papando as manguinhas, cada uma melhor do que a outra, babando manga, aproveitando a sensação de gosto bom e fresco e exatamente no ponto, como que fabricadas pela receita do maior cozinheiro do momento. Juro que é hora de dar graças, mesmo que seja coisa tão pequena.
Não dou todos os créditos à criação orgânica, quero conhecer essa mangueira, não pode estar longe, quero provar outras mangas dela, algumas maduras, outras semiverdes, e por fim cumprimentá-la por seu excepcional dom de cozinhar mangas como manda o figurino. Sabe, ter uma conversinha de comadres e trocar receitas.
E não foi só a manga que me surpreendeu. Minha nora chinesa sempre traz para mim e para ela o que chama de olhos-de-dragão ou pitombas. Era mais ou menos um vício de nós duas, pois a fruta não tem por onde se lhe pegue. Cacho seco, sem folhas, de bolinhas marrons, casca como madeira muito fina e caroço avantajado. A polpa semelhante à de uma jaboticaba ou lichia, mas quase nem existia. Transparente.
Pois não é que ela se transformou em fruta fina, o gosto igual, mas triplicado pela espessura da polpa? É quase uma lichia rústica. Daqueles frutos arquetípicos que você sente que conhece antes de provar, que nossos antepassados comeram no mato com casca e tudo.
Só quero imaginar o dia em que frutas e verduras tenham o gosto que Deus lhes deu, apesar de não entender nada disso, vai ver Deus nos deu todas encruadas e nós inventamos métodos para melhorá-las... De verdade, não sei."

NINA HORTA

Um comentário:

Anônimo disse...

Maravilhosa Nina Horta!
abr
Lalá