novembro 02, 2010

O que é e o que não é crônica

Estes são trechos da entrevista de Affonso Romano Sant' Anna extraídas do Observatório da Imprensa. O texto integral pode ser lido linkando no título:
"... O processo (de criação de uma crônica)" é muito variado e ao mesmo tempo é um só. Digo que é um só porque a crônica é um trabalho profissional. Você se senta e tem que produzir um texto dentro de um tempo determinado. Quando comecei a fazer as crônicas regularmente para o JB, eu tinha duas horas, durante uma terça-feira, para escrever aquela crônica. Então, é um problema que você tem que equacionar em duas horas. E esse tempo não é bom nem ruim. Ele é. Por exemplo, tenho quase dez livros de crônicas e estou pensando em publicar outro agora. Se não escrevesse crônicas, eu não saberia o que eu penso sobre uma série de coisas. A crônica obriga o cronista a raciocinar, a pensar e a formular seus sentimentos. E é interferir no cotidiano. Como eu faço uma crônica de interferência no cotidiano – até diria que essa crônica, comecei a fazer nos anos 80 – diferente da crônica que se fazia antes porque até então a crônica de Rubem Braga, de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e até do Drummond era uma crônica meio lírica, episódica, narrando pequenos incidentes do cotidiano, um pouco para divertir as pessoas e, sobretudo, atemporal. Então, comecei a fazer uma crônica de interferência na política. Tenho vários exemplos que se tornaram notórios. Teve uma crônica, por exemplo, que o Sarney leu no avião (na época em que era presidente da República) e tomou providências urgentes para mandar trazer lá do Espírito Santo o Augusto Ruschi, que era um ecologista que estava morrendo, e aí tem toda uma história sobre isso. Teve também uma crônica que o Figueiredo leu, ficou possesso e quase se demitiu da presidência da República.
Tem crônicas também de outro nível, não mais político, um nível emocional, e que também mobilizaram muitas pessoas. Como a crônica "A mulher madura". Poucos anos atrás, recebi um e-mail de uma mulher perguntando se aquele e-mail era meu mesmo porque se fosse ela queria me contar que quando leu naquela crônica, que eu escrevi em 1985, que "a mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia", ela tinha 19 anos e decolou... Ela queria ser madura de qualquer jeito! Quer dizer, você escreve uma crônica e a pessoa atravessa o oceano por causa disso. Temos aí a força mobilizadora do texto... Então, é um tipo de crônica diferente. Por outro lado, você tem um tempo determinado para produzir e você pode quebrar a cara também. Você pode fazer uma coisa que não resulte em nada. Esse é o desafio. Agora, hoje em dia eu diria que a crônica anda muito mal. Porque os jornais partiram para o "liberou geral". Antigamente, você tinha meia dúzia de bons cronistas. A crônica era o lugar nobre do jornal e da revista. Como na revista Manchete, que tinha o Fernando Sabino, o Rubem Braga, o Paulo Mendes Campos, o Henrique Pongetti. Hoje, são mais de dez, vinte cronistas num jornal. Você poderia achar que isso é uma riqueza – e poderia ser uma riqueza – mas houve uma dispersão. Qualquer pessoa hoje pode virar cronista. Perdeu-se o encanto, perdeu-se a magia. Você já não sabe o que é e o que não é crônica. Houve uma confusão entre cronistas, colunistas, articulistas etc..."
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Bem, eu costumo dizer que eu sou do tempo do papel carbono e do mimeógrafo a álcool, que o pessoal da sua geração nem sabe mais o que é... No entanto, sempre tive uma curiosidade normal. Quando fui trabalhar no jornal pela primeira vez, adolescente, muita gente ainda escrevia à mão, à tinta, com pena! Pena tinteiro. Depois é que veio a máquina de escrever. Depois veio a máquina elétrica. Depois veio o computador, vários tipos de computador. Hoje, a imprensa já percebeu que ou ela faz uma parceria com a internet ou ela morre. Tanto é que o jornal El País (da Espanha) já está programado para daqui a dez anos ser substituído totalmente pelo meio eletrônico. No Jornal Nacional, depois de cada notícia, fica o William Bonner remetendo a pessoa para a página da internet como que para treinar a pessoa a ver o jornal eletrônico. Resolvi criar um blog para mim – e esse blog vai virar um site em pouco tempo – por uma razão muito simples: se eu escrever um artigo no Estadão ou no JB esse artigo vai atingir às pessoas de São Paulo ou do Rio, e pronto. Eu fui a Belém do Pará outro dia a uma Feira do Livro e, de repente, apareceram uns alunos do Amapá, que moram em Macapá. Eram meus leitores e vieram com artigos de jornal que tinham recortado vinte anos atrás. Eles nem sabiam que eu já tinha publicado em outros jornais, outras revistas, que já tinha publicado certos livros. Aí isso me fez cair na real. Pensei: vou logo partir para o meu jornal, o blog é o meu jornal. Então, o estudante brasileiro em Nova Orleans ou o estudante brasileiro no Japão – tem gente estudando literatura brasileira no Japão – ou na China, assim como o estudante em São Carlos, em São Paulo, vai ao meu blog e tem tudo ali. E eu converso com ele o tempo todo. Então, é a literatura em tempo real porque não posso esperar que a livraria vá cumprir o seu papel. Você ainda tem edições de livros até hoje em que o normal é de 2.000, 3.000 exemplares, e a rede de livrarias não funciona como deveria funcionar. O livro é caro, você não pode estar comprando e a internet é de graça. Então, está havendo uma mudança e eu estou tentando acompanhar isso.
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Primeiro, todo mundo é leitor. Mesmo os que não sabem ler. Uma das coisas que Lévi-Strauss falou num ensaio é que é uma falácia a gente achar que os analfabetos não têm cultura. Eles têm cultura, têm um conhecimento, uma visão de mundo. O que acontece com a imprensa, com a palavra escrita, é que ela fixa o conhecimento, ela passa de maneira mais ágil e eficaz o conhecimento, a técnica, e faz a história andar com mais agilidade. Quanto ao bom leitor, ele não é aquele que lê só um gênero, mas é aquele que lê de tudo o tempo todo. Ele lê bula de remédio, lê jornal, lê anúncio no chão, publicidade... Porque o mundo inteiro é uma grande informação que está sendo repassada. Um romancista, por exemplo, para fazer sua obra tem que ter arregimentada uma quantidade de informação dispersa na memória do mundo incrível. O poeta a mesma coisa. Hölderlin, grande poeta de língua alemã, dizia que para elaborar uma metáfora, o poeta tem que viajar muito, tem que sofrer muito. Portanto, é uma questão de leitura e interpretação."
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Jornalista que não gosta de ler e de escrever está no lugar errado. E os melhores jornalistas são aqueles que têm um escritor vivo dentro deles. O jornal é a primeira leitura de muita gente, logo é um elemento de alfabetização num sentido amplo, forma de "ler o mundo".


Afonso Romana Sant' Anna

Um comentário:

Valéria Santos disse...

Adoro ler, se estou triste leio para me transportar do lugar onde fica a tristeza, quando me sinto alegre leio para comemorar, na ociosidade leio para me ocupar...Chego a agradecer meus olhos sãos por ela me possibilitar a leitura de forma natural.