setembro 08, 2010

Sobre o jogo


"Os jogadores jogam como os amantes amam, como os ébrios bebem, necessária, cegamente, sob o império de uma força irresistível. Há seres devotados ao jogo, como há seres devotados ao amor. Quem inventou a história daqueles dois marinheiros possuídos pelo furor do jogo? Naufragaram e só escaparam à morte após terríveis aventuras, pulando para o dorso de uma baleia. Assim que lá se encontraram, tiraram dos bolsos seus dados e seus fritilos e se puseram a jogar. Eis uma história mais verdadeira que a verdade. Cada jogador é um desses marinheiros. E com certeza há no jogo algo que remexe todas as fibras dos audazes. Não é uma volúpia medíocre tentar a sorte. Não é um prazer sem embriaguez provar num segundo meses, anos, uma vida inteira de esperança. Eu não tinha nem dez anos quando o sr. Grépinet, meu professor da nona, leu-nos em sala de aula a fábula do Homem e do Gênio. No entanto, recordo-a melhor do que se a tivesse escutado ontem. Um gênio dá a um menino um novelo e lhe diz: “Este fio é o dos teus dias. Toma-o. Quando quiseres que o tempo escoe para ti, puxa o fio: teus dias passarão rápidos ou lentos segundo desenroles o novelo rápida ou morosamente. Enquanto não tocares no fio, ficarás na mesma hora da tua existência.” O menino tomou o fio; puxou-o primeiro para se tornar homem, depois para se casar com a noiva amada, depois para ver crescerem os seus filhos, depois para conseguir empregos, lucros, honrarias, para superar as preocupações, evitar as mágoas, as doenças vindas com a idade, enfim – que fazer? – para terminar uma velhice importuna. Tinha vivido quatro meses e seis dias desde a visita do gênio.
Pois bem, que é o jogo senão a arte de obter num segundo as mudanças que o destino só produz normalmente em muitas horas e mesmo em muitos anos, a arte de acumular num único instante as emoções esparsas na lenta existência dos outros homens, o segredo de viver a vida inteira em alguns minutos, enfim, o novelo do gênio? O jogo é um corpo a corpo com o destino. É o combate de Jacó com o anjo, o pacto do dr. Fausto com o diabo. Joga-se dinheiro – dinheiro, quer dizer, a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vai virar, a bilha que está a correr dê ao jogador parques e jardins, campos e vastos bosques, e castelos a elevar no céu suas torres pontudas. Sim, essa pequena bilha que corre contém em si hectares de boa terra e tetos de ardosia cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; encerra tesouros de arte, maravilhas do gosto, jóias prodigiosas, os mais belos corpos do mundo, almas, mesmo, que nem se imaginavam venais, todas as condecorações, todas as honras, toda a graça e todo o poder da terra. Que digo? Encerra mais que isso: encerra o sonho. E você quer que eu não jogue? Se o jogo só fizesse mostrar esperanças infinitas, se só mostrasse o sorriso dos seus olhos verdes, seria amado com menos furor. Mas tem unhas de diamante, é terrível, dá, quando lhe compraz, a miséria e a vergonha; eis porque é adorado.
A atração do perigo está no fundo de todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer mesclado ao medo embriaga. E que há de mais terrível que o jogo? Ele dá, ele toma; suas razões não são as nossas razões. Ele é mudo, cego e surdo. Ele pode tudo. É um deus.
É um deus. Tem seus devotos e seus santos que o amam pelo que é, não pelo que promete, e que o adoram quando os golpeia. Se os despoja cruelmente, imputam a culpa a si mesmos, não a ele.
“Joguei mal”, dizem.
Acusam-se e não blasfemam."


Anatole France (trecho de O Jardim de Epicuro).
Ilustração : "Os Jogadores" - Caravaggio

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