setembro 09, 2010

"Eu tomo uma Coca-Cola"


HÁ SÉCULOS venho aguentando a cara de "verguenza ajena" dos meus amigos quando, ao jantar com eles, eu peço uma caipirinha e uma coca geladíssima, enquanto bebericam um vinho mais adequado ao que comemos.
Mas não tem jeito. Conheci a Coca-Cola quando tinha uns quatro ou cinco anos. Foi a vizinha, a mulher do "seu" Rutênio, aviador, que comentou a chegada da novidade, pelas asas da Panair. Só me lembro de que tinha gosto de sabão Aristolino, não é possível negar porque todos achavam a mesma coisa. O sabão Aristolino, por sua vez, já era uma antiguidade líquida, da mesma cor da Coca.
A bebida vinha acompanhada da ideia de felicidade, riqueza e americanos. Numa ingratidão sem-fim, traímos o Guaraná e aos poucos nos viciamos totalmente, com recaídas, numa bebida que achávamos ruim. Os mais velhos, não. Permaneceram patriotas. Na adolescência, o cuba-libre.
Acho que era falta de assunto e a nossa vidinha de criança se resumia a escola e festas de aniversário dos colegas, com bolo, olho de sogra, ameixas-pretas com bacon ao forno, cajuzinho de amendoim, pequenos sanduíches. O sanduíche padrão para chás ou aniversários, ai, como éramos inocentes e espartanos naquela época, não passava de um retângulo de pão de forma branco, no qual se passava maionese feita em casa, claro.
O processo da maionese era lento e fascinante, o prato fundo, as gemas que misturávamos com o garfo, numa velocidade de processador de alimentos, despejando de vez em quando um fio de azeite sobre elas. A gema deveria incorporar o azeite, e só então mais um fio. Para afinar a maionese, suco de limão, para engrossar, mais azeite. E sempre corria-se o leve perigo de desandar. Pronta, era só passar no pão, bastante. Como enfeite, usava-se um círculo de tomate que era recortado com a boca de um vidrinho de remédio. Fazia as vezes de uma flor, mais uma salsinha chata como se fosse o galho onde nascia a flor.
Para acompanhar, muitos copos de Guaraná morno. Como foi a transformação da Coca-Cola em símbolo dos símbolos, não sei, tudo baseado em emoções certamente muito poderosas e profundas, o que está além da capacidade interpretativa de uma mera viciada. Entrei num site corporativo da Coca-Cola e fiquei até em dúvida se estava no lugar certo, parecia o site politicamente correto e verde de uma missão evangélica.
No livro "Os Mímicos", do Naipaul, ele mostra bem o efeito da bebida quando chegou a Trinidad. Trazia empregos, glamour, riqueza e o tio do protagonista, por parte de mãe, era quem misturava o xarope e engarrafava. O pai dele, professor pobre, não se conformava com o enriquecimento rápido da família da mulher e lembrava a todo instante que havia comprado leite na porta, vendido pela sogra, que puxava a vaca com uma corda e a ordenhava na hora, o leite jorrando para dentro de um balde da cozinha ou outro utensílio qualquer da casa. E agora todo aquele ti-ti-ti de Coca-Cola pra cá, Coca-Cola pra lá.
Enfim, a bebida não é só um refrigerante, basta olhar a garrafa para assanhar teóricos em todos os campos. Pode personificar o que se bem quiser. Para nós, simples mortais , "eu tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento e uma canção me consola, eu vou... Por que não? Por que não?". Alegria da pura.

NINA HORTA

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