setembro 26, 2010

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Um herói picaresco
Santos, 1954


NÃO CHEGUEI A CONHECER MEU PAI como aparece nesta fotografia. Difícil imaginá-lo tão novo e tão magro. Mas no pouco que ele contava de suas aventuras antifranquistas e amorosas em Barcelona, era assim que eu o via. A versão de que eu me lembro, já percebi, difere um tanto da de minhas irmãs, não sei como será o pai delas, mas o meu é este, um herói picaresco.
Húngaro, judeu e pobre. Fez parte daquela geração de húngaros formados em excelentes escolas, pelas quais passaram muitos dos grandes cientistas do século 20 (gente como Von Neumann, que apesar do nome, era judeu e húngaro). Com as cotas antissemitas que restringiam o acesso às universidades húngaras, foi estudar na Tchecoslováquia, na universidade de Brno -isso mesmo, esse nome impronunciável. Teria gostado de ser cientista: como precisava ganhar a vida depressa, fez-se engenheiro. Era um grande engenheiro.
Foi para Barcelona e, trotskista, juntou-se às forças antifascistas. Imagino-o no POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), mas, embora eu tivesse gostado de o saber em armas e na lama com George Orwell, ele nunca disse que tivesse estado no front. Conheceu Barcelona nesse momento excepcional que aliava a liberdade e a fantasia da época à sua própria juventude. Moravam três húngaros juntos: ele, engenheiro, um amigo quase médico que, tendo largado a faculdade no último ano, vivia de fazer abortos, e uma amiga que se empregava por períodos breves em casas de família. Assim que um dos rapazes conseguia um dinheirinho, a amiga pedia as contas e devolvia o avental.
A partir daí, minha história toma um cunho folhetinesco. A certa altura, meu pai rouba o afeto da namorada catalã e comunista do amigo quase médico. Fiquei assim ciente que trotskistas e comunistas podiam se envolver romanticamente. Até aí, tudo bem. Só que esse episódio coincide com a tomada de Barcelona pelos comunistas e com o expurgo de trotskistas e anarquistas que se seguiu.
De vingança e de ciúme, o tal quase médico denuncia meu pai como espião trotskista. A namorada, que era secretária das juventudes comunistas, e a mãe dela, secretária do PC catalão, sendo as primeiras a saber da denúncia, correm a salvar meu pai da morte certa: a mãe, de carro com chofer, imagem que sempre me pareceu insólita. Mãe e filha levam meu pai à estação de França e despacham-no para Paris. Meu pai, que foi ser engenheiro de cabos elétricos em Londres, nunca deixou de amar Barcelona.
Essa história determinou minha vinda para o Brasil, por um encadeamento imprevisível, mas lógico a cada elo. Meu pai conheceu minha mãe em Paris, em 1939, e no dia seguinte pediu-a em casamento. Disse-lhe que queria voltar para Barcelona. Minha mãe respondeu-lhe que era melhor esperar que Franco deixasse o poder, e que, como parecia que ia haver guerra, podiam esperar por isso em Portugal, que ficava ali ao lado da Espanha e não entraria na guerra. Foi assim que meus pais foram para Portugal e que minhas irmãs e eu nascemos portuguesas: graças aos encantos de Barcelona e ao duradouro governo de Franco (1939-75).
Não cabem aqui as peripécias que os levaram a sair de Portugal. Viemos para o Brasil, e não para outro país da América Latina, porque o português era nossa língua. Pode-se dizer assim que Barcelona levou a Lisboa e Lisboa levou a São Paulo e, portanto, que graças ao amor de meu pai por Barcelona, enraizei-me aqui. As histórias de imigrantes, por mais diferentes que sejam, têm pelo menos algo em comum: são implausíveis. Isso porque a realidade costuma ser implausível.
Implausível como o elefante que, no dia em que chegamos a Santos, estava tomando banho na praia do Gonzaga. Dez dias depois, a 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas se matou.


MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

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