fevereiro 06, 2010

DIÁRIOS (1947-63)

"A abertura do diário da ensaísta norte-americana Susan Sontag escrito por ocasião de sua visita a Hanói revela que a idade e a fama não diminuíram a exigência de sinceridade nem os exames de consciência que caracterizam seus textos. "Viagem a Hanói", publicado em 1969 em "A Vontade Radical", começa com o questionamento da "opositora apaixonada da agressão americana no Vietnã" sobre suas motivações ao aceitar o convite para visitar o Vietnã do Norte.
"Não sou nem jornalista nem ativista política, (...) tampouco especialista em Ásia, mas acima de tudo uma autora teimosamente não especializada que, até aqui, tem sido em grande parte incapaz de incorporar em seus romances ou ensaios suas concepções políticas radicais e seu senso de dilema moral, por ser uma cidadã do império americano."
Masturbação intelectual
Vinte anos antes de "A Vontade Radical" (Cia. das Letras), a "autora teimosamente não especializada" já se mostrava antiacadêmica. Aos 17 anos escrevia em seu diário: "Não vou lecionar nem fazer o mestrado depois da graduação... Não pretendo deixar que o meu intelecto me domine, e a última coisa que quero é cultuar o conhecimento ou as pessoas que têm conhecimento!".
Mais tarde, em 1962, depois de ter estudado um ano em Paris com bolsa de pós-graduação: "Para mim, dar aula é uma masturbação intelectual". Os diários da adolescência e da juventude de Susan Sontag, organizados depois de sua morte pelo filho dela, David Rieff, vão de 1947 a 1963. A paixão política do final da década de 1960 está completamente ausente naquele período.
Sontag parece alheia a tudo o que diz respeito ao pós-guerra, nos EUA e na Europa: não há menções ao macarthismo, à Guerra Fria, a Cuba, ao Holocausto. Suas paixões intelectuais são literárias, vagamente filosóficas e, de certa forma, "psicológicas": intenso esforço de entender a si mesma.
Conformismo
Atrevida, inteligente, desafiadora, a adolescente começa o diário com uma profissão de (não) fé: "Eu acredito: a) que não existe nenhum deus pessoal nem vida após a morte; b) que a coisa mais desejável do mundo é a liberdade de ser verdadeiro para si mesmo, ou seja, Honestidade; c) que a única diferença entre os seres humanos é a inteligência...".
Nas últimas páginas, já perto dos 30 anos, o leitor encontrará uma mulher mais conformista e muito mais infeliz. Tudo o que fez entre a primeira página e a última, fruto do inegável talento que a teria "salvo de si mesma", parecem ter sido esforços para compensar sua inabilidade no amor e no sexo.
O tom provocante dos primeiros anos foi aos poucos substituído por uma escrita pautada pela culpa: exames de consciência exaustivos, listas de decisões para o autoaperfeiçoamento, autoacusações constantes e finamente inteligentes, relatos de suas humilhações amorosas.
Primeiro, com a arrebatadora Harriet, que a iniciou na vida homossexual; a seguir com a distante Irene Fornes, namorada de Susan de 1959 a 63. Bem-sucedida em todas as suas iniciativas intelectuais e profissionais, Susan Sontag parece perder-se no afã fracassado de agradar às amantes: "(devo...) amar a verdade mais que querer ser boa" (março de 1963).
O mesmo não aconteceu no casamento com seu ex-professor de sociologia, Philip Rieff, numa reação contra a homossexualidade recém-revelada que ela demorou a assumir. Em 21/11/50, Susan refere-se ao convite do professor Rieff para uma pesquisa; em dezembro, registra que está "namorando firme Philip Rieff".
Em 1951 seu diário tem apenas uma entrada: "Casei com Philip com plena consciência + medo de minha própria vontade apontada para a autodestrutividade". O ano seguinte passa em branco, como se a vida conjugal tivesse anestesiado as inquietações de Susan, e em 1953 ela já se dá conta de que está na vida errada. O encantamento apaixonado por David, seu menino precoce, não a salva da infelicidade.
Em 1956 esboça algumas "notas sobre o casamento": "Casamento se baseia no princípio da inércia.// Proximidade sem amor" etc.
Libertação
Em 1957, à beira da separação: "Duas pessoas algemadas uma à outra perto de um monte de esterco não deviam discutir". Em 1949, depois da primeira experiência homossexual e antes de decidir entrar na linha casando-se com Philip, ela escrevera: "Amar o corpo de alguém e usá-lo bem (...). Posso fazer isso, eu sei, pois agora fui libertada...". E depois do divórcio: "A vinda do orgasmo mudou a minha vida".
"Libertar-se" não foi fácil, ainda que Susan já estivesse em plena consonância com a onda subterrânea de libertação dos jovens que veio à tona na Europa e nos EUA em 1968.
O valor da sinceridade de seus diários, para aqueles que se pretendem escritores, ensaístas e críticos, é que a autora nunca se ilude quanto à fonte amorosa e sexual de todo impulso a escrever e de toda vontade (radical) de saber.

MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta

Nenhum comentário: