janeiro 12, 2010

O tédio dos apocalíticos

"SEMPRE GOSTEI do fim do mundo. Não falo da Amazônia, não falo do Alasca. Falo do fim do mundo em minha casa. Ou na sala de cinema, onde o fim do mundo normalmente acontece.
É um fetiche: um filme em que a humanidade é devastada por um vírus/um extraterrestre/um cometa/ uma guerra/um desastre climatérico/uma profecia primitiva (ah, escolham vocês) e eu estou sentado na primeira fila, como uma criança fascinada pelo Papai Noel.
Mais ainda: em privado, tenho uma coleção generosa de DVDs sobre o dito cujo -o apocalipse, não o Papai Noel. Sou, no fundo, como certos cavalheiros vitorianos, que colecionavam pornografia francesa em vãos de escada.
No meu caso, depois da estante das comédias, dos westerns, dos musicais e dos solenes "filmes de autor", há uma parede falsa que se abre para um mundo mágico: o mundo onde estaremos todos exterminados amanhã de manhã.
Claro que existe uma diferença entre mim e a restante espécie. Os meus apocalipses são no cinema e duram, no máximo, duas horas. Para a restante espécie, os apocalipses são na vida real.
Nesta virada do ano, por exemplo, não faltaram textos na imprensa a lembrar o fato: desde 2000 que vivemos a fantasiar e a tremer com a ameaça da nossa própria aniquilação coletiva. O pesadelo começou logo em finais de 1999, como lembram Denis Dutton (no "New York Times") ou Daniel Kalder (na "Spectator"): esse foi o momento em que um vírus informático de nome impronunciável (Y2K) prometia bloquear os computadores e atirar o planeta de volta para a Idade da Pedra.
Não aconteceu nada: falhas mínimas, risíveis, depois de bilhões de dólares dos governos a preparar os seus sistemas informáticos para o pior. Quando a Terra entrou em 2000, a Terra continuou o seu caminho. Suspiros de alívio.
Por pouco tempo: se um vírus informático não devastava a humanidade, os animais talvez o fizessem. Vieram as vacas. De preferência, loucas. E prontas para enlouquecer os comedores de carne com doença neurológica e genocida. Foi a ruína: dos produtores de carne, não dos comedores dela.
E quando não eram as vacas, eram as aves que espirravam na Ásia e constipavam o Ocidente. Ou então os porcos, com suas gripes pandêmicas e destrutivas. A última aconteceu em 2009. Ou, para sermos rigorosos, não aconteceu. Estranhamente, as gripes aviárias e suínas desapareceram como apareceram: sem ninguém saber como, para onde, por quê.
Um apocalipse, porém, continua a pairar sobre as nossas cabeças amedrontadas: o aquecimento global.
Tem uma certa piada escrever isso quando, em Lisboa, nesse preciso momento, olho pela janela e está um frio digno de esquimós. Mas esta evidência empírica, juntamente com a evidência empírica de que as temperaturas estabilizaram desde inícios do século 21, não arrefeceu o único aquecimento que existe: o aquecimento mental dos catastrofistas.
Depois das vacas, das aves e dos porcos, o apocalipse, afinal, vem de cima. Que poético! Que providencial! Que apropriado! Resta perguntar: como se explicam os nossos recorrentes namoros com o apocalipse?
Sim, a herança judaico-cristã pode ter um papel decisivo na nossa concepção escatológica da história: na crença de um tempo final em que os seres humanos serão punidos por pecados seculares. Mas o namoro com o apocalipse talvez tenha uma explicação mais prosaica: o tédio.
No século 20, havia motivos sérios para acreditar na ameaça apocalítica. Duas guerras mundiais não ajudaram o otimismo da espécie humana; e a Guerra Fria, com sua destruição mútua assegurada através de armamento nuclear, permitia todos os pesadelos lúgubres.
Mas, hoje, no meio da afluência ocidental, não estaremos a exagerar um bocadinho?
Curiosamente, é a afluência que leva os homens a procurar alguma adrenalina. As necessidades básicas estão suprimidas para a maioria do rebanho. E, com a desagregação da União Soviética, os horrores da guerra são hoje um cenário distante, que ocupa o noticiário da noite.
Mesmo o terrorismo, que continua a pender sobre a cabeça dos ocidentais, não promete acabar com tudo. Promete acabar com algumas coisas. É pouco. E nós queremos mais. Queremos abraçar o apocalipse, no cinema ou na realidade, porque existe um tédio de morte a mendigar uma excitação de morte".

JOÃO PEREIRA COUTINHO

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