janeiro 23, 2010

Ádega literária

DENTRE OS PRAZERES viciantes, o único que continua resistindo à polícia do politicamente correto e às leis nazistas (como a que delega aos não fumantes a tarefa de fiscalizar os fumantes em pequenas Gestapos do tabaco) é o culto do vinho. Não se trata apenas de resistência em nome do direito ao prazer historicamente adquirido, mas também de resistência estética.
O cigarro perdeu sua aura sublime, a cerveja brasileira foi rebaixada ao padrão de gosto dos pagodeiros (leiam-se os artigos de Rogério Cezar de Cerqueira Leite na Folha) e até mesmo o uísque se viu associado a uma virilidade indesculpavelmente sexista.
Hoje, seria difícil imaginar Sartre escrevendo o "O Ser e o Nada" (em que a distinção entre um cigarro e um cachimbo define a ontologia) e Humphrey Bogart (obrigado a trocar o cigarro e a capa de gabardine por banhos de sol e malhações) entraria no Rick's Café de Casablanca batendo no balcão e pedindo uma taça de açaí...
O vinho é o último bastião contra a barbárie e a breguice sanitárias, possivelmente porque nenhum outro narcótico é tão antigo e impregnado de história. Por isso, "A Alma do Vinho", antologia com contos e poemas que têm a bebida como personagem, deveria ser uma bíblia para dipsomaníacos convictos, orgulhosos e, sobretudo, letrados.
O volume de textos é enorme, inclui desde um fragmento do poeta grego Arquíloco de Paros, uma ode de Horácio (de leitura tão áspera para o leitor contemporâneo como o vinho resinoso da Grécia) e episódios bíblicos (Noé trêbado, Cristo transformando água em vinho nas bodas de Caná) a contos clássicos, como "O Tonel de Amontillado", de Edgar Allan Poe, e "O Peru de Natal", de Mário de Andrade. Cada obra é precedida de uma nota do organizador, Waldemar Rodrigues Pereira Filho, que faz uma breve análise do significado do vinho no texto em questão.
Alguns comentários são iluminadores, como a comparação da opulenta personagem do conto "Bola de Sebo", de Guy de Maupassant, à prostituta da canção "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque. Dentre as nada graves lacunas, faltam exemplos de ditirambos -as antigas odes em louvor a Dionísio, deus do vinho, que tiveram uma versão moderna na ópera "Otelo", de Verdi- e, na apresentação da série de poemas "O Vinho", de Baudelaire, valeria mencionar o genial ciclo de canções do compositor austríaco Alban Berg.
O vinho é coadjuvante dos contos de Voltaire, Balzac e Verga, mas é protagonista em Italo Svevo e em autores menos conhecidos, como o argentino Juan Palazzo (e seus "borrachos" miseráveis) ou a dupla francesa Erckmann e Chatrian (com deliciosas histórias regadas pelos vinhos da Alsácia).


MANUEL DA COSTA PINTO na FSP

Um comentário:

Anônimo disse...

Acrescentaria ao artigo a obra "In Vino Veritas" do compositor Henrique de Curitiba sobre quatro temas:
Cabernet/Merlot;
Beaujolais Nouveau;
Liebfraumilch;
Bardolino;
gravada pelo "Napa Valley Chorale", California/2001.