agosto 09, 2009

Sorris da minha dor

"...mas eu te quero ainda,
sentindo-me feliz, sonhando-te mais linda.


Essa canção de versos pungentes, de autoria de Paulo Medeiros, era ouvida frequentemente na minha casa, na adolescência e na juventude, assim como muitas outras da mesma época. Não me lembro se na voz de Silvio Caldas ou Carlos Galhardo, ou ainda na de Orlando Silva ou Nelson Gonçalves. Que era um deles, tenho certeza, pois eram eles que formavam o quarteto de ouro do cancioneiro popular, sob o comando indiscutível de Francisco Alves, também conhecido como Chico Alves e Chico Viola, e eternamente cognominado de O Rei da Voz.
Minha avó cochilava ouvindo essas canções. Não cochilava por desinteresse ou tédio, como podem pensar alguns leitores mais apressados, mas para sonhar. Minha avó Leonor, nascida em Sergipe, gorda e boa, e de coque no alto da cabeça, sonhava muito, sonhava sempre. Não apenas ouvindo essas canções românticas de versos sofridos e resignados, mas também acompanhando o radioteatro da companhia de Manuel Durães e Edith de Moraes pela Rádio Record de São Paulo, campeão de audiência desde 1939, como nos conta o Google. O radioteatro era a novela das 8 até os anos 50. E Manuel Durães e Edith de Moraes, o Francisco Cuoco e a Regina Duarte daqueles tempos sem televisão.
Já se falou muito que Orlando Silva era o Roberto Carlos da época, pois atraía multidões em suas apresentações públicas. Ainda não se falava em show, pelo menos não que eu me recorde. Dizia-se audição, espetáculo e até mesmo recital. Lembro de uma dessas apresentações de Orlando, na Praça do Patriarca, em São Paulo, quando ele cantou da marquise de uma emissora de rádio para milhares de pessoas. Como também não me sai da lembrança a última apresentação de Francisco Alves no Largo da Concórdia, também na capital paulista, para um público incalculável, antes de viajar e morrer na Via Dutra, a caminho do Rio. Pois é, as praças eram do povo, como queria o poeta Castro Alves, mas também dos cantores populares. Era nesses espaços públicos que tudo acontecia: a música, os comícios e os protestos.

A praça, a praça é do povo,
como o céu é do condor!


Não tenho como garantir se antigamente se sofria mais por amor do que nos dias de hoje. Mas sofria-se à beça. E era um sofrimento silencioso. Portanto, mais dolorido. Afinal, como ouvimos sempre, as grandes dores são mudas. Abrir-se com os amigos e com o analista, que pagamos para nos ouvir, acaba por abrandar a nossa dor. À época dessas canções e do radioteatro, sofria-se calado, no escuro do quarto. Ou no banho. Conheci uma jovem que abria a torneira e ficava ali, misturando suas lágrimas à água do chuveiro. Quase sempre saía do banheiro curada do impossível amor, mas, não raro, resfriada e febril. Sim, adoecia-se com o sofrimento que nos causava a inútil paixão. Quando se conhecia uma jovem magra e com olheiras, percebia-se logo que estava doente, e que a sua doença tinha um único nome: amor não correspondido. Amor que custava a passar, quando passava. E quantas vezes passava, mas não curava? Meses, anos depois, já noiva de outro rapaz ou mesmo casada, podia-se ouvir, vindo do mais fundo do seu peito, um suspiro involuntário. E podia-se ver, sob a roupa de linho, um arfar dos seus seios. E podia-se presenciar uma saída rápida da sala, para que uma lágrima não lhe aflorasse aos olhos, à vista de todos. Então alguém já não disse que só existe um tipo de amor eterno, que é o amor não correspondido?

Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda,
sentindo-me feliz, sonhando-te mais linda.
Escravo eterno teu, farei o que quiseres,
tens para mim a alma eterna das mulheres..."


Manoel Carlos na Revista VEJA Rio, hoje.

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