Obama coisa nenhuma. Ela vai salvar o mundo
"Eu quero a mulata do Gois, a mais radical de todas, que do alto de seu salto plataforma dez, nota dez, sapateie no tamborim do juízo que ainda me resta e, sem dó, orgulhosa de sua superioridade, de sua beleza tremebunda, não deixe trema sobre trema, despreze todos os hifens acadêmicos e promova no âmago amargo, na minha triste correção ortográfica, um sacode de alegria.
Que arrepie o salgueiro.
Que grite chegou a hora, mocidade! Que promova a reforma da língua, buliverse os costumes e fundemos, mestre-sala e portabandeira de uma nova civilização, a vida pautada no descontrole das sensações.
A mulata do Gois, é disso que se precisa. Poesia numa hora dessas. Voto nela, com todo o respeito.
A mulata do Gois é a contrapartida brasileira aos mísseis do Hammas. Talvez não seja exatamente o que se compreenda — base de torpedos sensuais, furacão dois mil — como um projeto de paz na Terra. Mas é tudo de bom quando cai, explode o coração na maior felicidade, entre os homens de boa vontade.
Obama sabe do que estou falando. Ela rima, dá sentido ao enredo de 2009 e levanta a arquibancada democrata, judaica ou palestina.
É ecumênica. Respeita a Convenção de Genebra, não estoura o tempo de desfile e quer dizer apenas o que está em seu baticumbum miraculoso.
Seja feliz. Ela não finge discursos, não desfila alegorias proustianas. Diz no pé.
Finalmente a graça de uma mulher sem subtexto intelectual. Direto ao que interessa.
Ela veio do cais dourado da velha Bahia, subiu mais de 1.800 colinas, até balançar todos os chocalhos em nossas retinas cansadas de brancaranas azedas, branquelas anoréxicas desfilando um eterno Fashion Rio de tédio e depressão. A alegria é a prova dos nove, a carne é o alimento dos homens. Sinto que a mulata do Gois vai saber compreender — aquelas sandálias romanas subindo pelas coxas da imaginação nacional — quando eu lhe sussurrar no ouvido o mantra da espécie macha que ela invoca: "Chora, cavaco".
Quero a mulata do Gois au grand complet, na língua nagô, com tudo que lhe for harmonia, paio, evolução e bateria.
A trufa branca do Gero, o azul-piscina do Copacabana Palace, o verde do dólar, o quarteirão amarelo-ouro da H. Stern em Ipanema.
Tudo bobagem. Meu reino, todas as cores do meu grêmio recreativo, pela mulata do Gois.
Voto na que tenha o óbvio mais ululante e o apresente alvissareiro, da cor do pecado, da jabuticaba, entre os tantãs do meu sambódromo já tão devagar, tão devagarzinho. Que atravesse o samba dessa vida tão segundo grupo, chegue na apoteose de mim, ó pedaço arrancado de mim, e volte tudo de novo com os propósitos mais terríveis e antigos. Bagunce o coreto do velho. Bote o barraco abaixo.
Eu nasci cem anos atrás, no ventre de uma revista "Fon-Fon", e não tem nada desta galeria de belezas que me seja de mais espanto.
Havia o footing da avenida, na porta da Colombo — e eu estava lá. Vestido de almofadinha, cofiando os bigodes ao lado de Bilac, eu vi passar, saiote acima do joelho, as melindrosas do J. Carlos — e ele atrás delas, entre outras preces, também fazia fiu-fiu.
Eu vi as polacas do Noel, as escurinhas do Geraldo Pereira e as prostitutas do Jorge Amado. Quero a mulata do Gois aos meus pés.
Quarenta anos depois, eu ainda estava lá, coração aos pulos, degrau em degrau, e subi ao estúdio do fotógrafo Valentim. Eternamente boquiaberto com a capacidade de elas se reinventarem, vi as certinhas do Lalau serem eternizadas de frente, de costas e de perfil para as páginas da "Última Hora". Dançamos o hully-gully. Depois fui à redação de "O Cruzeiro", na Praça Mauá, ver as garotas do Alceu.
Passei pela porta do Instituto de Educação para carimbar as cadernetas e entronizar as normalistas no panteon das curvas nacionais.
Tomamos uma vaca-preta no Bob's.
Dei um banho de cuba-libre no violão das vedetes que rebolavam na Tiradentes, ofereci o frontispício como alvo para que as chacretes arredondadas mirassem o bacalhau do velho guerreiro. Todas inesquecíveis, azeitonas verdes, cebolas louras, servidas com um fio de azeite português.
As boletes paulistas, as deusas safadinhas da pornochanchada, as coelhinhas ora glabras, ora com florestas amazônicas, as cocotas, as uvas, os aviões, as cachorras, as estagiárias de calcanhar sujo da PUC e a Miss Brasil 2000.
A todas essas musas acompanhei neste século e lá vai fumaça de alucinações calipígias, decotes abissais e espartilhos atochados. Saudades sinceras. Hoje derramo todo o meu capilé de alumbramento aos pés, ao lombo e às curvas da estrada que vai dar no avarandado, no puxadinho da mulata do Gois. Ela não deixa dúvidas. Felicidade, passou no vestibular do novo padrão de beleza. A saúde venceu. É a mulher de volta aos básicos instintos do paraíso divino. A mulata do Gois convoca os da sua espécie para celebrar a alegria de estar vivo e, depois de concentrados em tamanha euforia, sair por aí, batendo tambor num novo carnaval de êxtases e sabores.
Quero a mulata do Gois até o fim do meu período, a chave-de-ouro do texto, o filé idem do meu banquete magro, o marrom-glacê desta quarta-feira de cinzas. Quero, repito, bato o pé e reclamo, a mais tremebunda de todas, aquela que não deixa qualquer dúvida sobre seus despropósitos para com nós outros, tristes escravos de sua alegria. Ela vai acabar com a guerra na Faixa de Gaza, equilibrar o mercado financeiro, dar um choque de ordem na Rio Branco.
Depois, jamais extenuada, ela cuidará de quem mais precisa. Quando eu achar que acabou a crônica, a mulata do Gois vai afinar o reco-reco, pegar no ganzê, pegar no ganzá, e dar um choque de desordem, instaurar a sua Sapucaí de delícias na minha cidade ortográfica tão arrumadinha. Urge. Careço. Preciso.
Quero a mulata do Gois, suas redondilhas, seus adereços e, "delira, meu povo", seu maravilhoso grito de libertação."
Joaquim Ferreira dos Santos
(O Globo de hoje)
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