outubro 30, 2008

Dramas da liberdade

"Às vezes, lembro-me de uma velha senhora que me procurou perplexa e inconformada com sua atual condição. Problemas na retina não lhe permitiam mais ler, e ler era tudo de que mais gostava. Os dentes falsos, que só mastigavam o que não fosse muito sólido, eram meros enfeites que sempre se soltavam na boca. As pernas estavam fracas, os pulmões, cansados, a memória, falhando.
Embora seu corpo a mantivesse viva, também a impedia de viver. Como equacionar a falta de liberdade a que ele a condenava com o sentimento de liberdade do seu espírito, que queria sair pelo mundo, fazer coisas, transformar-se?
O drama da velha senhora é o mesmo que atravessa a vida de todos nós: o drama da liberdade. Poucas vezes tão nítido. E nem sempre vivido na relação conosco mesmos. Na maioria dos casos, vivido na relação com os outros.
Esse drama está aí, nos conflitos das separações, nas crises dos adolescentes, nas guerras, nas angústias de quando queremos mudar de vida. E, inevitavelmente, jogando-nos na encruzilhada do "quero e não posso", ou "quero e não quero" (ou "não sei o que quero").
Não fosse a condição de que viver como homens é viver na companhia de outros homens, a dificuldade de realizar o que se quer não existiria. Mas quem se satisfaz só com a liberdade de pensar, de sentir e de querer quando está a sós consigo mesmo? Ninguém. A "liberdade interior", solitária, é inútil.
A liberdade é um negócio entre homens. Ela implica no movimento de superarmos uma situação que nos limita e, em seguida, estabelecermos as condições para uma vida em acordo com nossos propósitos.
Meu sobrinho, aos quatro anos, disse ao meu cunhado: "Pai, quando eu for grande e você quebrar as duas pernas e a mamãe também, posso pegar o carro e levar minha irmã para a escola?" É a maior e mais inocente expressão da consciência que alguém tem de que seu poder de agir segundo a própria vontade está fora de suas mãos.
Ninguém nos dá a liberdade.
Se fosse assim, jamais seríamos livres, pois dependeríamos da permissão do outro. Nunca seremos livres para agir. Ao contrário, agimos para sermos livres. Ser livre dá trabalho.
A liberdade exige a habilidade de fazer acordos com os outros (e conosco) que nos permitam realizar nossas vontades.
Mas, paradoxalmente, esses acordos nunca asseguram que se realizará a vontade do eu, mas a vontade do nós.
A experiência da liberdade, hoje, passa pela recuperação de nossa capacidade de fazer acordos e pela descoberta de que a melhor realidade para a existência pessoal é aquela que compartilhamos com outros.
Criados sob o individualismo, acabamos por só reconhecer nossa liberdade quando impomos nossa vontade. Daí tanta decepção e impotência. E, de um ponto de vista mais amplo, daí as ditaduras, os totalitarismos. Daí tantos Hitlers, Stalins, Maos, Otelos e Lindembergs.
A soberania da vontade do eu é, também, fonte de uma monstruosidade: homens dominadores, fortes, mas solitários. Só a solidão pode ser mais opressiva do que a falta de liberdade". --------------------------------------------------------------------------------
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial

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