agosto 21, 2008

O FOGO SAGRADO

De um e-mail que recebi da Lúcia Teixeira:
A minha Casa
"Não sei como são as outras casas de família.Na minha casa todos falam de comida.
- “Esse queijo é seu?”
- “Não, é de todos.”
- “A canjica está boa?”
- “Está ótima”.
- “Mamãe, pede a cozinheira para fazer coquetel de camarão, eu ensino”.
- “Como é que você sabe?”
- “Eu comi e aprendi pelo gosto”.
- ”Quero hoje comer somente sopa de ervilha e sardinha”.
- "Essa carne ficou salgada demais”.
- “Estou sem fome, mas de você comprar pimenta eu como”.
- “Não, mamãe, ir comer no restaurante sai muito caro, e eu prefiro comida de casa. "
- Que é que tem no jantar para comer?”.
Não, minha casa não é metafísica. Ninguém é gordo aqui, mas mal se perdoa uma comida mal feita. Quanto a mim, vou abrindo e fechando a bolsa para tirar dinheiro para as compras.
- “Vou jantar fora, mamãe, mas guarde um pouco do jantar para mim.”
E quanto a mim, acho certo que num lar se mantenha aceso o fogo para o que der e vier. Uma casa de família é aquela que, além de se manter o fogo sagrado do amor bem aceso, mantenham-se as panelas no fogo. O fato é simplesmente que nós gostamos de comer.
Eu sou com orgulho a mãe da casa de comidas. Além de comer, conversamos muito sobre o que acontece no Brasil e no mundo, conversamos sobre que roupa é adequada para determinadas ocasiões...
Nós somos um lar."

Passei parte da manhã na cozinha, após haver lido esse texto da Lúcia. A imagem do fogo aceso (embora eu estivesse apenas cortando frutas para uma salada) me fez lembrar Fustel de Coulanges que conheci no primeiro ano da faculdade, quando ainda se estudava Direito Romano. O professor recomendou a leitura de A Cidade Antiga de sua autoria.
Um dos capítulos, descreve a casa do grego ou do romano que, segundo o Autor, abrigava um altar em que devia haver sempre carvões acesos. Era obrigação sagrada, para o chefe de cada casa, manter aceso o fogo dia e noite. Infeliz da casa onde se apagasse! O fogo não cessava de brilhar diante do altar senão quando se extinguia toda uma família. A extinção do fogo e da família eram expressões sinônimas entre os antigos.
É evidente que esse costume de manter continuamente o fogo aceso diante do altar prendia-se a alguma antiga crença. As regras e ritos então observados mostram que não se tratava de um costume qualquer. Não era permitido alimentar esse fogo com qualquer espécie de madeira. A religião distinguia, entre as árvores, as que podiam ser usadas para esse fim, e aquelas cujo uso era taxado de impiedade (nada com agressão ao meio ambiente). A religião ordenava também que o fogo se mantivesse sempre puro, o que significava, no sentido literal, que nenhum objeto impuro podia ser lançado nele, e, no sentido figurado, que nenhuma ação pecaminosa devia ser cometida em sua presença.
O fogo era algo divino a ser adorado e cultuado. Ofertavam-lhe tudo o que julgavam agradável a um deus: flores, frutos, incenso, vinho. Pediam sua proteção, julgando-o todo-poderoso. Dirigiam-lhe preces ardentes, para dele obter os eternos objetos dos desejos humanos: saúde, riqueza, felicidade. Via-se assim no fogo um deus benfazejo, que mantinha a vida do homem; um deus rico, que o alimentava com seus dons; um deus forte, que protegia a casa e a família. Em presença de algum perigo, procurava-se nele o refúgio.
Era o fogo que enriquecia a família. No infortúnio o homem queixava-se ao fogo e na felicidade dava-lhe graças. O soldado que voltava da guerra agradecia-lhe por haver escapado dos perigos. Ésquilo nos apresenta Agamenon voltando de Tróia, feliz, coberto de glória; ele não agradece a Júpiter, e não é ao templo que vai levar sua alegria e reconhecimento; o sacrifício de ação de graças ele o oferece no altar de sua casa.
Portanto, o deus do fogo era a providência da família. E o banquete o ato religioso por excelência, presidido pelo deus, que havia cozido o pão e preparado os alimentos; dirigiam-lhe também uma prece no princípio e no fim da refeição. Antes de comer, depunham sobre o altar os alimentos e antes de beber, fazia-se a libação do vinho.
O fogo sagrado símbolo de um lar. Hoje, como antigamente.

2 comentários:

Anônimo disse...

Vi o que escreveste. O texto inspirador, porém, não é meu, é da Clarice Lispector, é aquele mesmo de que te falei em SP, aquele que, quando li, disse EUREKA, essa é a minha casa!. Mas, tivesse eu os dons da divina, tê-lo-ia escrito. Sou primitiva vês? É exatamente com a mesma religiosidade do cidadão da Cidade Antiga que faço minhas oferendas ao fogo sagrado do lar. Não creio, mas minhas preces sempre vão para os meus manes, meus avatares.

Também com saudade.

lúcia

Unknown disse...

Na casa de minha avó era assim. Todo mundo que por lá circulava pensava também em comida. Rapidinho saía uma pipoca, um doce, etc. O fogo era alimentado. Depois, foi diminuindo até se apagar. Mas aí surgiram outros personagens, conversas, famílias, o que significa que outro fogo foi aceso. E assim continua até hoje... Mesmo morando só, vejo que algumas vezes é preciso se acender o fogo, fazer nem que seja um leite quente pra tomar na cozinha, seja lendo um livro ou uma daquelas correspondências que deixam em nossa porta.

Edson