fevereiro 03, 2008

1968...


na visão do Fernando Gabeira
”Os ventos que sopraram na Europa e nos Estados Unidos foram os mesmos ventos que sopraram aqui, mas com resultados e perspectivas diferentes. Na Europa havia um certo cansaço e uma crítica também ao comunismo oficial. Nos Estados Unidos era uma visão contra-cultural, muito estimulada pela revolta contra a guerra do Vietnã. O movimento no Brasil não tinha a característica contra-cultural que teve nos Estados Unidos.
...Os ventos eram os mesmos, mas em cada lugar deixaram um legado diferente. O movimento que existiu no Brasil foi contra a ditadura militar. Evidentemente que a democracia é parcialmente resultado dessa expectativa de derrubada da ditadura militar. Por que parcialmente? Por que se o movimento fosse vitorioso, tal como ele se definia, nós teríamos caído em uma outra ditadura, que é do proletariado. O modelo da luta armada brasileira era o modelo cubano.
... Eu vejo como um erro da minha geração a opção pela luta armada. Todo o processo de luta armada foi uma opção equivocada do ponto de vista político e, indiretamente, contribuiu para o enrijecimento da ditadura militar e forneceu argumento para repressão a grupos que eram opositores da ditadura militar, mas não estavam fazendo a luta armada. A luta armada não só fortaleceu a ditadura militar como reduziu o espaço da luta democrática.
... Lutar contra um regime ditatorial te deixa muito orgulhoso. Deve-se sempre colocar isso na sua alta conta. Em determinado momento tive que abrir mão de todas as minhas prerrogativas de carreira, arriscando a própria vida para lutar contra um regime militar. Mas é fundamental reconhecer que não só a forma de luta era um equívoco como os objetivos. Isto é, a implantação do socialismo era equivocada.
... É muito difícil não ser diferente de quarenta anos atrás. Seria preciso um rigor quase cadavérico (risos). Eu sou um pouco prisioneiro daquele período. Prisioneiro de 1968. Esse passado está colado a mim. Não só por que cada vez que há uma comemoração sobre 1968 a mídia me ouve, como também os próprios Estados Unidos me impedem entrada lá por conseqüência daquele período. No entanto, independente da posição americana, eu hoje me identifico muito com aquelas pessoas que querem superar aquele período. O que significa superar aquele período? Reconhecer que os anos 60 produziram muita rebelião, uma contra-cultura, mas que hoje a presença desse choque entre contra-cultura e conservadores é estéril. Assim como é estéril o choque puro e simples entre esquerda e direita. Evidentemente que existem algumas pessoas que tem mais condições de falar sobre isso do eu. Uma delas é o Barack Obama (presidenciável americano), que tem falado sobre a necessidade de superar essa discussão ideológica estéril. Ele tem mais condição do que eu por que ele era um menino em 1968. Eu fiquei com a etiqueta de 1968 colada no meu corpo. Mas por outro lado ele tem menos condição do que eu porque é candidato a presidente da República e é constantemente acusado de buscar o centro para obter mais votos. Eu observo aqui no Brasil a esterilidade de aprisionar o passado, referindo-me à esquerda, à direita, conservadores e contra-cultura. Os debates não avançam.
... É preciso encontrar pontes. E a força da contra-cultura, de seus temas e também as propostas da esquerda em confronto com as propostas da direita e conservadores nos leva a um debate que representa muito mais o passado do que as possibilidades que temos de explorar no futuro. É preciso dizer adeus a tudo isso. Eu gostaria que essa fosse a última vez que eu falasse de 1968. Eu gostaria de sepultar esse período para poder olhar para frente. Esse período, sob certos aspectos, dificulta o olhar para frente.
... Em 1968 eu era um jovem rebelde, o que nessa época fazia parte de um sentimento de mundo. Como eu, havia milhares nas ruas de São Paulo e de todas as cidades do planeta, e víamos o futuro sem medo algum; pelo contrário, nós éramos o futuro. Vivi num mundo em que as idéias progressistas, de esquerda, predominavam e prometiam grandes mudanças. E os jovens estavam na vanguarda dessas mudanças. Sabíamos que as coisas realmente podiam ser mudadas, não se tratava de megalomania: os vietnamitas acabaram derrotando os americanos; Cuba fez uma revolução e sobreviveu, está aí até hoje, mesmo com todos os problemas; os africanos conquistaram a independência; os operários franceses fizeram uma verdadeira transformação em seu país; o PCI acabou liderando uma reforma política, econômica, social e cultural na Itália. Não era utopia. No Brasil, o ano de 1968 foi um marco para todos nós, que o vivemos intensamente, ativamente. Mais do que um movimento contra a ditadura, foi um movimento pela defesa da educação pública e uma revolução cultural. A geração de 68 se misturou com o Cinema Novo, com a música popular, com as mudanças que estavam ocorrendo na arquitetura e nas artes plásticas brasileiras. E, mesmo tendo sido derrotados politicamente - a ditadura continuou firme por muitos anos -, nós mudamos a cara do país. Porque o movimento estudantil também foi música, teatro, cineclube... foi cultura, linguagem, criatividade e propostas inovadoras. Não dava mais para aceitar as idéias, a linguagem e a cultura que estavam atrás de nós; elas eram coisas muito velhas, de um Brasil que já estava morto. Vivíamos no Brasil urbano e industrial. Não existia mais aquele país que havíamos estudado na escola: essencialmente agro-exportador, baseado na produção agrícola e na indústria artesanal de consumo.
Para mim, o maior legado da geração de 68 é o cultural. Por exemplo, não apoiei a invasão da Tchecoslováquia porque era impossível aceitar aquilo. Por mais que ouvisse argumentos mais do que convincentes do ponto de vista marxista, ou socialista, achava que aquilo ia contra o espírito de liberdade e de criatividade da geração de 68. O espírito de aventura, de sonhar e acreditar que é possível fazer transformações. A geração de 68, quando rompeu com os padrões de comportamento cultural e com a estrutura autoritária da família, das relações empresariais, das relações políticas que existiam, e buscou combinar a mudança de comportamento com a luta pela liberdade, deixou uma contribuição extraordinária. Eu me considero privilegiado por ter sido um dos estudantes da geração de 68, por ter vivido em 1968".
(trechos da entrevista à Época)

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