abril 05, 2014

Os russos


"O professor de geografia do oitavo ano revelou à turma que a palavra lucro vem de outra, logro, que quer dizer roubo.
- Todo lucro é roubo.-concluiu.
Impressionada, a classe se debruçou sobre o tema, usando como exemplo uma carrocinha de pipoca. Se o dono da carroça empregar alguém para remexer a panela e tirar disso o seu sustento, estará se apropriando do esforço alheio, o que é reprovável.
Meu filho, presente em sala, se mostrou avesso à ideia de que o investimento não merece retorno. Mas, assim como na redução lógica do professor havia uma condenação moral embutida, a rejeição do menino trazia outro exagero. A feroz defesa que fez do livre mercado soava algo reacionária.
Me formei em escolas liberais da zona sul do Rio de Janeiro.
A anistia aconteceu no primeiro ano do meu secundário. Livres da ditadura, que exilou intelectuais, artistas, militantes e catedráticos de esquerda, os professores ganharam o direito de falar abertamente, em sala, sobre as suas convicções políticas.
A liberdade de expressão foi uma conquista inestimável.
Nas matérias de história e geografia, em especial, combatia-se o fatalismo do subdesenvolvimento com a aversão ao imperialismo. A direita, os milicos e os americanos encarnavam os cavaleiros do nosso Apocalipse.
Trinta e quatro anos distanciam a minha sétima série do oitavo ano do meu filho. Na época, a divisão entre capitalismo e comunismo ainda era clara, não mais.
A competitividade econômica do oeste revelou-se eficaz e foi adotada pelo igualitarismo vermelho do leste; mas a especulação financeira, que culminou com a bancarrota de 2008, foi paga pelo Estado. Acabaram-se, assim, as fronteiras que separavam um lado do muro do outro.
Você pode argumentar que, para ensinar, é preciso partir dos fundamentos; que só é possível entender o atual paradoxo depois de expor aos imberbes os ideais puros nos quais se baseiam ambas correntes.
Mas 50 anos depois do golpe, 40 depois da anistia, 30 da perestroika, 20 do Real e 12 da eleição do PT, eu guardo a suspeita de que o Brasil é um país que se situa em algum lugar entre a "Veja" e a "Carta Capital". Entre o meu filho e o professor dele.
No capítulo 11 da parte seis de "Anna Kariênina", Liévin - o único personagem imune ao traço de reprovação cômica com que Tolstói descreve o resto dos abastados - fala do desprezo que sente pela elegância custosa dos grandes centros e da sua admiração pelos mujiques do campo.
Em uma caçada na companhia de dois hedonistas natos, parentes chiques de São Petersburgo, a conversa recai sobre a decência e o lucro.
Depois de desdenhar da iniciativa privada, o jovem fazendeiro defende que o único ganho legítimo é aquele adquirido através não da astúcia de terceiros, mas da força do trabalhador.
- Qualquer lucro que não corresponda a um trabalho investido é desonesto -afirma ele.
A mesma explanação do mestre de geografia do fundamental 2 proferida ali, pelo herói russo, meio século antes dos caipiras da revolução bolchevique varrerem do mapa os entediados condes, duques e princesas do romance.
A literatura me veio como solução.
Tolstói se vale de igual conceito, mas o enriquece de figuras que negam, rebatem, discutem. A contradição humana é o narrador. Se o objetivo é ampliar os horizontes do aluno para que ele forme uma visão mais completa do mundo, não conheço cartilha melhor.
A provocação do professor, sem o contexto, soa como doutrina, e nenhuma doutrina sobreviveu às últimas intempéries.
Hoje, é quase impossível discernir movimento de classe de manobra política; interesse partidário de real empenho pela população. Não defendo que um guri de 14 anos dê conta de "Guerra e Paz", mas um capítulo já faria efeito.
A opinião do educador, se proferida por Liévin, traria maior resultado; a pilhéria do cunhado perdulário, que sugere que o parente acabe com a culpa doando a fazenda aos empregados, enriqueceria a discussão, e os 137 anos que separam a adúltera de Tolstói dos jovens cariocas dariam a perspectiva histórica da reflexão.
A arte é um sério antídoto contra as certezas.
E uma baita aliada da educação."

FERNANDA TORRES

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