janeiro 24, 2014

Mrs. Dalloway


Uma introdução a Mrs. Dalloway

É difícil – talvez impossível – a um escritor dizer qualquer coisa sobre sua obra. Tudo o que ele tem a dizer, já disse da maneira mais completa, da melhor maneira que lhe é possível, no corpo do próprio livro. Se não conseguiu deixar claro o que pretendia dizer, é pouco provável que consiga num prefácio ou num posfácio de algumas páginas. E a mente do autor tem outra característica que também é avessa a introduções. É inóspita para sua cria como uma pardoca com seus filhotes. Depois que as avezinhas aprendem a voar, têm de voar; quando saem do ninho, a mãe começa talvez a pensar em outra prole. Da mesma forma, depois de impresso e publicado, um livro deixa de ser propriedade do autor; este o confia ao cuidado dos outros; toda a sua atenção é demandada por algum novo livro, que não só expulsa o predecessor do ninho, como também costuma denegrir sutilmente o caráter do outro em comparação ao dele mesmo.
É verdade que o autor, se quiser, pode nos contar alguma coisa de si e de sua vida que não está no romance; e é algo que devemos incentivar. Pois não existe nada mais fascinante do que se enxergar a verdade por trás daquelas imensas fachadas de ficção – isso se a vida for de fato verdadeira e se a ficção for de fato fictícia. E provavelmente a ligação entre ambas é de extrema complexidade. Livros são flores ou frutas pendentes aqui e ali numa árvore com raízes profundas
na terra de nossos primeiros anos, de nossas primeiras experiências. Mas, aqui também, para
contar ao leitor alguma coisa que sua imaginação e percepção ainda não descobriu, seria necessário não um prefácio de uma ou duas páginas, e sim uma autobiografia em um ou dois volumes. Devagar, com cuidado, o autor se lançaria ao trabalho, desenterrando, desnudando, e, mesmo depois de trazer tudo à superfície, ainda caberia ao leitor decidir o que importaria e o que não importaria. Assim, quanto a Mrs. Dalloway, a única coisa possível no momento é trazer à luz alguns pequenos fragmentos, de pouca ou talvez nenhuma importância: por exemplo, que Septimus, que depois se torna o duplo dela, não existia na primeira versão; e que Mrs. Dalloway,
originalmente, ia se matar ou talvez apenas morrer no final da festa. Esses fragmentos são
humildemente oferecidos ao leitor, na esperança de que, como outras miudezas, possam ser úteis.
Mas, se temos demasiado respeito pelo leitor puro e simples para lhe apontar o que deixou
passar ou lhe sugerir o que deve procurar, podemos falar de modo mais explícito ao leitor que despiu sua inocência e se tornou crítico. Pois, ainda que se deva aceitar em silêncio a crítica, seja positiva ou negativa, como o legítimo comentário a que convida o ato da publicação, de vez em quando aparece alguma afirmação que não se refere aos méritos ou deméritos do livro e que o escritor sabe que é equivocada. É uma afirmação dessas que se tem feito sobre Mrs. Dalloway com frequência suficiente para merecer talvez uma objeção. Disseram que o livro era fruto deliberado de um método. Disseram que a autora, insatisfeita com a forma de ficção em voga na época, decidira pedir, tomar emprestado, roubar ou mesmo criar outra forma própria. Mas, até
onde é possível ser honesto sobre o misterioso processo mental, os fatos são outros. Insatisfeita, a escritora podia estar; mas sua insatisfação se dirigia basicamente à natureza, por dar uma ideia sem lhe prover uma casa onde pudesse morar. Os romancistas da geração anterior não ajudaram muito – aliás, por que haveriam de ajudar? Evidentemente, a morada era o romance, mas ele parecia construído sobre o projeto errado. A essa ressalva, a ideia começou, como começa a
ostra ou o caracol, a secretar uma casa própria. E assim procedeu sem nenhum rumo consciente.
O caderninho que abrigava uma tentativa de montar um projeto logo foi abandonado e o livro cresceu dia a dia, semana a semana, sem projeto nenhum, exceto o que era determinado a cada manhã na atividade de escrever. Desnecessário dizer que a outra maneira – construir uma casa e depois morar nela, desenvolver uma teoria e então aplicá-la, como fizeram Wordsworth e Coleridge – é igualmente boa e muito mais filosófica. Mas, no presente caso, foi necessário antes escrever o livro e depois inventar uma teoria.
Se, porém, assinalo este ponto específico dos métodos do livro para discussão, é pela razão
citada: porque se tornou tema de comentário entre os críticos, e não porque mereça atenção em si. Pelo contrário, quanto mais bem -sucedido o método, menos atenção ele atrai. O que se espera é que o leitor não dedique nenhum pensamento ao método ou à falta de método do livro. O que lhe diz respeito é apenas o efeito do livro como um todo em sua mente. Desta questão, a mais importante de todas, ele é um juiz muito melhor do que o escritor. Na verdade, tendo tempo e liberdade para moldar sua própria opinião, ao fim e ao cabo ele é um juiz infalível. É a ele,
então, que a escritora entrega Mrs. Dalloway e sai do tribunal confiante de que o veredito, seja a morte imediata ou alguns anos mais de vida e liberdade, em qualquer dos casos será justo.

Virginia Woolf
Londres, junho de 1928

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