janeiro 19, 2014

Lobo Antunes



"Trata-as em diminutivo, assim por cima do ombro, as crónicas, "uns contitos", fragmentos, "aguarelazitas", "esboços", "fantasias", "palavrinhas", "pequeninos nadas", "piscinas para crianças" com água pela cintura e onde nunca se perde o pé. E, no entanto, é nas suas crónicas que tantas vezes António Lobo Antunes se revela e expõe de uma forma tão íntima - a ele e a nós, nos nossos pequenos devires de inseto, sempre a formigar na mesquinhez dos dias. 
Mais velho de seis irmãos - gosta de se dizer "filho mais velho de dois filhos mais velhos" -, António Lobo Antunes lembra-se de quando eram pequenos: adoecia um, adoeciam todos. E o pai, "um pai muito pouco ternurento", médico anatomopatologista, ia até ao quarto dos seus rapazes, sentava-se numa das camas e lia-lhes poesia. Ou fazia com eles um jogo temível. Citava uma frase e eles tinham de acertar em quem a houvera escrito. Ou punha a tocar os primeiros acordes de uma sinfonia para os filhos lhe adivinharem a autoria. A VISÃO propôs a um dos escritores maiores da literatura mundial o mesmo jogo, um pouco perverso. Lançar-lhe algumas das frases que ele escreveu nas crónicas quinzenais desta revista (coligidas em Quinto Livro de Crónicas) e decifrar-lhe sentidos ocultos, escavar-lhe as profundezas e outros canais subterrâneos. "Isto é muito difícil, porque me faz perguntas e eu não tenho respostas, só ainda mais perguntas. E quando penso que tenho uma resposta, ela transforma-se numa pergunta dentro de mim... E a seguir a essa não resposta vem um vazio angustiado... Eu estou cheio de perguntas e cada vez tenho menos certezas. Penso que os livros vão ficar, mas o que passei nos últimos seis anos [com o cancro e a recidiva], fizeram-me questionar tudo e até estar-me nas tintas para que os livros fiquem ou não". "O que é que me interessa isso, se eu morro." 
VISÃO: 'Devemos fazer tudo o mais simplesmente possível mas não mais simplesmente do que isso" - é um dos títulos que deu à crónica em que fala da pouca importância que lhes dá, quando as retira ao acaso da gaveta e as envia para a editora...
ANTÓNIO LOBO ANTUNES: Foi Einstein que disse essa frase. E é tão verdadeira, não é? [Pausa.] Às vezes mostravam-lhe um conjunto de equações e ele dizia "é esta": "Porque é a mais simples e a mais bonita." As crónicas nasceram um bocado assim, há 20 anos, quando o Vicente Jorge Silva me convidou para um suplemento de domingo do Público. Aceitei com a condição de o Zé [Cardoso Pires] poder alternar comigo, pois andávamos ambos bastante aflitos de dinheiro. Pensei que deveriam ser assim uma coisa levezinha, divertida e não sei quê... Nunca pensei que tivessem tanto sucesso e que viessem sequer a ser traduzidas lá fora... Espanta-me, porque onde jogo a minha vida é nos livros... O problema para mim, depois de escrever uma crónica, é regressar ao ritmo do livro. 
"As crónicas são um galope diferente, que me seca a cadência do livro e me atrapalha o ritmo. O segredo de escrever é ser estrábico, ter um olho na bola e outro nos jogadores (...) descobri-me lagarto numa pedra, à coca, muito quietinho, rodando as pupilas para sítios diferentes, guloso da mosca de uma frase." 
Faço a crónica num dia. Mas, depois, já não consigo voltar a pegar no livro que estava a escrever. Tenho de voltar a despir-me de tudo...  
> Nas crónicas, fala muito do seu passado, da sua infância, da guerra, da doença, dos avós. Mas, depois, também diz: "O passado é a coisa mais imprevisível do mundo, não para de se transformar." 
A frase é do [George] Orwell, eu sempre canibalizei muita coisa. O meu pai tinha uma mania para nós, seis irmãos rapazes, horrorosa. Dizia: "Quem não sabe quem escreveu esta frase não sai no sábado." Ou então punha meia dúzia de compassos de uma sinfonia a tocar e ameaçava: "Quem não sabe quem compôs isto não sai no domingo." E a Memória de Elefante [primeiro livro, 1979] estava cheio desse jogo com o leitor. Se calhar era uma pequena vingança contra o meu pai. 
> Mas, por outro lado, também refere: "Estou cheio de citações, que gaita. Pareço um cigano a mostrar o ouro falso dos anéis..."
A gente quer que as pessoas nos admirem por fazermos uma bela metáfora ou fazermos uma pirueta, mas o importante no livro é que ele seja eficaz. O que interessa andar a mostrar plumas, e penas e proezas? A mim o que me interessa é escrever. O que está à volta custa-me um bocado, a exposição pública, tudo o que rodeia os livros. A minha vida é muito retirada, não vou a lançamentos. E finalmente lá consegui que a editora se deixasse disso. Durante anos e anos, escrevia os livros e deitava-os fora no fim.Um amigo meu viu um maço de papéis, jogado a um canto, perguntou-me o que era. Era a Memória de Elefante. Levou-o a várias editoras que não o quiseram e o livro acabou por ser publicado em 1979. Mas foi tarde demais, porque, nessa altura, eu já tinha escrito dois. 
> Porque é que deitava tudo fora?
Porque ainda não tinha encontrado a voz. Pensava "ainda não é isto, ainda não é isto, ainda não é isto...". Eu sou canhoto, escrevia com a mão esquerda. E quando tento desenhar com a direita sai diferente. E a Memória de Elefante já foi escrita com a mão direita. Mas as receitas do hospital continuava a escrevê-las com a esquerda. Os gestos mais finos, de desenhar ou pregar um botão também os fazia com a esquerda. Não tenho talento para desenhar, é evidente, mas o meu pai tinha e obrigava-nos a fazer cópias de quadros famosos, como nos obrigava a ouvir música. Nos primeiros anos de casados, os meus pais tiveram logo quatro filhos e, então, quando um estava doente, adoeciam todos. Ele vinha com um livro, sentava-se numa das camas e começava a ler para nós, sobretudo poesia. Aos 19 anos, eu só escrevia poesia, queria ser poeta. Então descobri que não tinha qualquer jeito e fiquei desesperado com aquilo... Fazia umas tentativas muito canhestras e a minha poesia era, de facto, muito má... Havia pouco dinheiro lá em casa. O meu pai era médico, só estava no hospital e não ganhava muito. Ia uma vez por semana ao consultório, mas muitas vezes não levava nada aos doentes, trazia-os para casa, para jantarem connosco. O mestre dele, o Egas Moniz, dizia que nunca se devia levar dinheiro a artistas - e de repente todos eram artistas, até os bandarilheiros [risos]. De maneira que foi assim que conheci uma série de gente interessante. Era um homem que não se dava com quase ninguém, um homem muito fechado, mas um homem de paixões, até ao fim: a leitura e a pintura, a música... Fui fazer a primeira comunhão a Pádua por causa de uma promessa, por eu não ter morrido de meningite, em bebé... 


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