outubro 02, 2013

Fidalguia


"Lorde Mountbatten - último vice-rei da Índia - foi, certa vez, eleito como o homem mais elegante do mundo. Perguntado o que achava, respondeu que ele não devia ser tão elegante assim, já que o haviam notado.
Pode-se alegar que a fidalguia é qualidade da nobreza e da aristocracia, e eu concordo, com um reparo: que a nobreza (a qualidade de ser nobre) e a aristocracia (o comando dos melhores) não são privilégio daqueles que o senso comum reconhece, com pompas e circunstâncias.
Um dos aristocratas mais fidalgos que conheci foi Seu Amadeu, faz-tudo na casa dos meus pais, aos quais serviu por 48 anos. Emanava serenidade e eficiência, havia algo nele que o tornava irresistível aos meus incontáveis sobrinhos.
Não era nenhuma sedução, não os paparicava, era alguma coisa acolhedora que as crianças viam nele, no jeito como cuidava de seus passarinhos, na mansidão com que falava e se movia, na discrição quase invisível com que fazia suas tarefas, no jeito de igual para igual como conversava com os pequenos, não a se infantilizar, mas a tratá-los como pessoas com discernimento de gente grande (pense na irritação que te causava ser tratado como um débil aos seus seis anos, quando você já era você).
Foi assim que conheci um fidalgo e aristocrata de aguda inteligência e de cultura singular gerado por acidente genético. Na origem, "fidalgo" significa "filho de algo". De fato, são prêmios da loteria genética que, apesar de capaz de produzir tanta vilania, cá e lá nos dá um refresco, só para lembrar que estética e ética são uma coisa só, e que é belo ser do bem.
Tenho hoje a ventura de conviver com outro desses fidalgos. Meu amigo Professor fez 89 anos esta semana, e busquei-o para ver um DVD aqui em casa. Era "O Último Samurai" (filme de 2003, com Tom Cruise e Ken Watanabe), a história de um Japão se ocidentalizando e a luta não reconhecida de um fidalgo para que seu país o fizesse sem perder sua identidade e valores.
Meu amigo não vive de seu passado, referência mundial em doenças do fígado que foi. Nossas conversas giram em torno de História, casos médicos, dinâmica das relações pessoais, tudo com o humor fino que sua inteligência lhe produz.
"Como vai a saúde, Professor?" "Olha, Daudt, afora o fato de eu estar morrendo de câncer, vou muito bem, e isso é o que me importa, já que de morrer ninguém escapa".
Outro dia, eu me detive a olhar umas revistas de relógios, na banca de jornais. "Não sei por que fico olhando relógios, se eu não os uso há vinte anos". E o Professor: "É, e eu não sei por que fico olhando mulher boa".
Mas o filme nos emocionou.
"Professor, você é o último samurai, uma vida dedicada à honra e à beleza de ser médico, da estatura com que sempre imaginamos os médicos, dedicado à excelência do serviço público, pela convicção de que o país merece tratar igualmente bem o pobre e o poderoso. Sua lição não se perde, também, pois sempre haverá quem se espelhe em seu exemplo".
Ele sorriu, tocado com o reconhecimento. Mas não gostaria que eu o identificasse aqui.
Como Lorde Mountbatten, prefere não ser notado".

FRANCISCO DAUDT

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