setembro 24, 2013

Nerds calóricos


"A boa comida é um prazer fugaz. Não é preciso ser Marcel Proust para ser levado a outro lugar no tempo ou espaço por um aroma ou sabor. Mas, ao contrário da boa arte ou da boa música, cuja memória pode ser recuperada por meio de uma reprodução, o prato é parte do momento, destinado a ser esquecido antes que a conta chegue.
Em tempos de cultura de conveniência, memória fotográfica e compartilhamento compulsório, a ideia de uma experiência particular e fugaz não faz sentido. Comer, como todo o resto, precisa ser compilado, fragmentado, classificado e compartilhado para que faça sentido. Seja por um misto de voyeurismo, exibicionismo e pornografia explícita ou por uma angústia proustiana de registrar de qualquer forma a experiência vivida que smartphones e câmaras fotografam, como nunca, todo prato de comida.
Muito antes que as mídias de massa e a publicidade impusessem ao mundo a forma correta ou desejável de se viver, a boa comida fazia parte do cotidiano, fundamental e indispensável como uma boa noite de sono, atividade física, conversas e sexo. Hoje que os ritmos elétricos incentivam uma vida de excessos, há uma vaidade, um exibicionismo vulgar em se ter - e mostrar que tem - muito de tudo que é novo.
Chamados de "foodies", esses fanáticos estão mais para nerd do que para glutão. Tipos extremos se comportam como viciados: precisam pedir algo diferente sempre que saem, corrigem a pronúncia de pratos em língua estrangeira, enfrentam horas de filas ou dirigem por quilômetros em busca de algo "novo" ou "autêntico". Como os "fashion victims", tornam-se dependentes do que deveria ser um prazer, arriscando a bancarrota financeira por comer em lugares acima de seu orçamento ou riscos de saúde ao experimentar toda comida de rua.
Ao tratar a comida como uma investigação cultural, muitos parecem ter deixado de lado o paladar, a nutrição ou a companhia, que deveriam ser os motivos originais de toda refeição. Seus restaurantes prediletos não têm nome na porta, ficam em bairros remotos, funcionam em horas aleatórias, não têm website.
Aplicativos como Foodspotting, Vivino, Untapped e guias diversos instalados em smartphones servem de referência para uma erudição instantânea para a escolha da melhor comida e bebida para o evento. Se não agrada ao seu paladar, a culpa é sua. Troglodita.
Não basta se submeter à ditadura do "personal foodie". É preciso registrar o que se come nos mínimos detalhes, usando para isso apps como o Evernote Food ou, para os analógicos, cadernos Moleskine desenvolvidos para esse fim.
Por mais que foodies extremos sejam carentes de atenção, elitistas ou superficiais, seu comportamento, como a ginástica aeróbica dos anos 80, pode deixar bons resultados. São eles, afinal, que levantaram as bandeiras do alimento orgânico, cultivado localmente, vegetariano, livre de hormônios ou alterações genéticas. Bem como da valorização da comida caseira e de extremos como a cozinha modernista com seus fornos atômicos.
É bem possível que esse movimento leve a uma alimentação mais consciente, saudável e gostosa para todos. Se não irritar todo mundo com suas KitchenAids e outras Ferraris culinárias".

LULI RADFAHRER

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