agosto 24, 2013

Nove Noites



Em Nove noites, vencedor do prêmio de literatura da Biblioteca Nacional e do Portugal Telecom, Bernardo Carvalho narra a descida ao coração das trevas empreendida pelo jovem expoente da antropologia americana, colega de Lévi-Strauss e aluno dileto de Ruth Benedict, às vésperas da Segunda Guerra. A história é contada em dois tempos, na tribo dos índios krahô (interior do sertão brasileiro) e na combinação progressiva entre a busca pelo testamento do engenheiro e a pesquisa que o narrador vai fazendo em arquivos, atrás das cartas do antropólogo e dos que o conheceram na época".

1. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergun­te aos índios.
Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia re­ceberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela supo­sição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antro­pólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios que o acompanha­vam na sua última jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que nada explicam. Que foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que eu mesmo tive a infelicidade de ajudar a redigir para evitar o inquérito. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e deixar desapare­cer comigo o que confiei à memória.
Também não posso confiar a mãos alheias o que lhe pertence e durante todos estes anos de tristezas e de­silusões guardei a sete chaves, à sua espera. Me perdoe. Não posso me arriscar. Já não estou em condições ou idade de desafiar a morte. Amanhã pego a balsa de volta para Carolina. Mas antes deixo este testa­mento para quando você vier e deparar com a incerteza mais absoluta. Seja bem-vindo. Vão lhe dizer que tudo foi muito abrupto e ines­perado. Que o suicídio pegou todo mundo de surpresa. Vão lhe dizer muitas coisas. Sei o que espera de mim. E o que deve estar pensando. Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do que agora lhe conto, assim como tive de contar com o relato dos índios e a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de inter­pretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua maneira, também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de razões para acreditar.
Estarei abusando da sua paciência e boa vonta­de, seja você quem for, se lembrar que morremos todos? Me lembro do dia em que ele chegou à cidade que chamou de morta nas cartas, em março de 1939, desconfiado como você agora, a primeira vez que o vi.
Todos conheciam o ronco do hidroavião da Condor quando se aproxi­mava da cidade, anunciando a sua chegada. Ninguém mais nos visi­tava. Muita gente correu para o rio. Eu estava ocupado com uma obra, mas ainda pude vislumbrar no chão da casa sem teto a sombra do avião, que sobrevoava as mangueiras a caminho do rio.
Terminei o serviço e desci até o porto. Ele posava para o fotógrafo que o represen­tante da agência Condor havia contratado para registrar o aconteci­mento e que, com a câmera sobre um tripé, fixava para sempre nas suas chapas a chegada do ilustre etnólogo, ao lado dos índios e do pilo­to, todos de pé sobre a asa do avião. Sua vinda provocou uma sensação que cinco meses depois todos já tinham esquecido, se é isso que você quer saber. Nós nos acostumamos muito depressa com o extraordinário.
Só eu guardo a memória dele. Mas naquele dia nem eu nem ninguém po­díamos imaginar o que recebíamos. Veio com um chapéu branco, como se fosse o capitão de um navio, camisa branca, bombachas e botas. Nem eu nem ninguém podíamos ver nada por trás da elegância tão altiva e imprópria para o lugar e a ocasião, ainda mais para quem agora olha retrospectivamente. Ninguém podia prever a desgraça que em menos de cinco meses lhe arrancaria a vida. Me aproximei da cena a que a cidade assistia muda, sem entender a missão que recebia e que nenhuma alma humana seria capaz de recusar. Eu fui essa alma. O repre­sentante da Condor nos apresentou, mas o etnólogo não me viu. Aper­tou a minha mão como a de qualquer outro e sorriu, sorria para to­dos, mas não notou a minha presença. Mal ouviu o meu nome. Se o tivesse entendido, teria na certa caçoado, porque apesar de tudo não lhe faltava humor. O meu nome é motivo de chacota fora daqui. E ele ti­nha acabado de chegar. Só mais tarde é que entenderia as circunstân­cias e as vantagens de ter um aliado em mim. Só então aceitaria a mi­nha amizade, a falta de outra. Posso ser um humilde sertanejo, amigo dos índios, mas tive educação e não sou tolo. Não guardo rancor de nin­guém, muito menos do dr. Buell, meu amigo, a despeito de tudo o que possa ter pensado ou escrito e a que só tive acesso pela incerteza das tra­duções do professor Pessoa a procurar nos papéis do morto uma explica­ção que eu mesmo fiz o que pude para esconder. Era preciso que ninguém achasse um sentido. É preciso não deixar os mortos tomarem conta dos que ficaram.


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