março 30, 2013

Travessuras literárias




"Outro dia, finalmente encontrei num sebo o famoso "A Shorter 'Finnegan's Wake'", a versão reduzida do intransponível livro de James Joyce feita em 1966 por Anthony Burgess, autor de "Laranja Mecânica". Burgess enxugou o livro de 628 páginas para 278. Com isso teria conseguido simplificar Joyce, tornando-o legível até por escolares? Não. O "Shorter Finnegan's" é tão intransponível quanto o "Finnegan's", só que de calças curtas.
Na literatura brasileira, um candidato natural a essa desidratação seria o "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Pensei até num título: "Pequeno Sertão: Veredas". Mas, como aconteceu com o "Finnegan's", talvez não fizesse diferença. Radical mesmo seria se o final do livro fosse reescrito: Riobaldo, que não entendia sua atração por Diadorim, descobrindo que o cabra não era uma mulher, como ele chegou a pensar, mas macho de verdade -e aí é que gostou para valer.
E se, no epílogo das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", se revelasse que o defunto autor criado por Machado de Assis apenas se fazia de morto para descobrir o que pensavam dele? E se, em "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, a cachorra Baleia, pressentindo que seria devorada por seus donos, fugisse, fosse adotada por outra família de retirantes e acabasse fazendo acrobacias num circo em Niterói?
E se certos personagens se imiscuíssem em outros livros? Imagine Nelsinho, o vampiro de Dalton Trevisan, seduzindo Capitu. Ou o farmacêutico Teodoro fugindo com Gabriela, deixando Dona Flor com o fantasma de Vadinho. Ou Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, aos beijos com o bebê de tarlatana rosa e sem nariz, de João do Rio.
Essas travessuras literárias me fascinam. Mas a única que já pratiquei foi traduzir um trecho das "Galáxias", de Haroldo de Campos.
Para o português".

RUY CASTRO

Nota: Vladimir Kush é o autor da imagem

Nenhum comentário: