fevereiro 16, 2013

O papa, a freira, os sotaques

"A freirinha repete: "Tenkió"! Depois começa a rir, mas logo para, quando leva um cutucão da colega ao lado, também freira. A cena aconteceu de verdade, na minha frente, faz alguns meses, no aeroporto de Congonhas.
Segundos antes, pelo sistema de som, uma funcionária de companhia aérea fazia um daqueles anúncios impossíveis de decifrar, supostamente em inglês: "De néxtchi fláitchi uíu dipartchi fron guêitchi êitchi. Tenkió."
As freiras eram estrangeiras e, claro, só conseguiram decifrar o "tenkió", provavelmente uma tentativa de dizer "thank you". Uma delas não se aguentou e, santa criatura, acabou zombando sem querer do sotaque dos nativos.
Lembrei desse caso prosaico por causa da renúncia do papa. Como sabemos, Bento 16 avisou que estava de saída em latim. Na sala de imprensa do Vaticano, acompanhando por um circuito interno, a repórter Giovanna Chirri, da agência Ansa, sentiu as pernas tremer. Ela entende latim. Captou antes de todo mundo a gravidade do que acontecia. Deu a notícia em primeira mão.
No Twitter, modesta, Giovanna explicou assim seu grande feito: "O latim do papa é muito fácil de entender".
De volta às freiras de Congonhas: se o papa falasse latim como a grande maioria dos brasileiros fala inglês, o mundo teria demorado muito mais para saber da renúncia. Talvez ainda não soubesse.
Sei que o tema é delicado, mexe com os brios nacionais. Até provocou uma confusão recente, quando o produtor musical americano Jack Endino, que trabalha com artistas do Brasil, reclamou de bandas brasileiras que insistem em cantar em inglês. "Não dá para entender nada."
No caso do rock, há um agravante. Além do sotaque incompreensível, as letras normalmente não fazem sentido. São escritas por brasileiros sem nenhuma familiaridade com o inglês que se fala no dia a dia. Na estrutura e na gramática, acabam sendo traduções literais, para o inglês, de frases em português.
Imagine, então, o pobre Jack Endino recebendo fitas demo de grupos brasileiros que cantam, com sotaque indecifrável, letras compostas em "portinglês"...
O produtor foi bastante atacado por seu suposto esnobismo. Mas tem razão. E não se trata de exigir sotaque perfeito, daqueles de locutor da BBC. Isso, quase nenhum não nativo de língua inglesa tem. A não ser que tenha recebido educação bilíngue, desde criança, o que só acontece com uma ínfima elite.
Para citar um exemplo extremo: Paulo Francis, correspondente em Nova York por tantos anos, falava um inglês erudito, sofisticado, de altíssimo registro intelectual. Tudo isso com um leve sotaque carioca. O que, ante seu domínio total da língua de William Faulkner e T.S. Eliot, não tinha a menor importância.
De novo: ninguém está pedindo que brasileiros falem inglês com sotaque nota dez. Até porque não precisa --americanos e ingleses estão acostumados a ouvir sua língua com entonação estrangeira. De Björk a Antonio Banderas, de Greta Garbo a Arnold Schwarzenegger, de Henry Kissinger a Albert Einstein, não são poucos os exemplos de não nativos de sucesso no mundo anglófono das palavras e das ideais.
Já por aqui, é bom lembrar, isso quase não acontece. Ao menor tropeço de um gringo no português, chiamos e fazemos piada. Ainda um país isolado do restante do mundo, o Brasil não está acostumado a escutar sua língua salpicada por um tempero de fora.
Vi uma vez um jornalista americano, residente no Brasil, sendo entrevistado na TV. O rapaz tropeçava um pouco nos gêneros, errava uma ou outra concordância nominal, mas se virava bastante bem.
Até que ele tocou onde não podia: disse que, como regra, brasileiros falam muito mal inglês. O apresentador sapecou: "Já o seu português está ótimo, né, meu filho?" A plateia veio abaixo, vingando-se da insolência do gringo.
De pouco valeu ele ter respondido a todas as questões e entendido tudo o que foi perguntado, mesmo sob a pressão de estar na TV. Tinha sotaque, cometia um errinho ou outro. Os brazucas não perdoaram.
Resumindo. Se um estrangeiro aparecer por aqui derrapando no português, mesmo que consiga se comunicar e entenda tudo, vai ser espinafrado sem perdão. Mas se um gringo se atrever a reclamar do inglês dos brasileiros, ele que se prepare para nosso contra-ataque chauvinista.
Que as freirinhas de Congonhas nos perdoem".
Álvaro Pereira Júnior

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