"Um cliente me explicou que, quando Hitler começou sua ascensão ao poder, os judeus alemães se dividiram em três grupos: o primeiro, de baixo teor de negação, anteviu o desastre e se mandou; o segundo, em que a negação conversava com a racionalização ("Afinal, não pode ser tão ruim, ele está melhorando a Alemanha". "É, mas o discurso dele é autoritário, e você sabe como ele se sente em relação aos judeus". "Mas nós ainda somos uma democracia, podemos fazer alguma coisa"), escapou por um triz, na última hora.
O terceiro negou até o fim e acabou nos Auschwitz da morte.
Negação e racionalização fazem um par de mecanismos de defesa automáticos, necessários para nossa saúde mental, mas que se tornam doença quando passam do ponto.
Precisamos de mecanismos de defesa que nos protejam do excesso de realidade. Sem eles, a consciência da morte nos deixaria imobilizados, e ninguém entraria num avião (duas violências contra nossos instintos: confinamento e altura).
Veja a conversa dos dois: "Não vai acontecer nada", diz a negação. "O avião é a maneira mais segura de viajar, já pensou quantos voos partem e chegam ao destino, inteiros por dia?", diz a racionalização.
Há uma negociação permanente, uma avaliação de custos e benefícios que usa esses mecanismos: "Risco há, mas pequeno". "E, depois, eu chego a Paris". "Logo comigo vai acontecer alguma coisa?". É raro que tomemos consciência desse diálogo interno, mas ele se dá, praticamente, a cada ação humana.
Esses mecanismos nos defendem das ameaças que vêm de outro programa mental, o superego. Ele nasce conosco para nos dar medo de perigos ancestrais (escuro, altura, confinamento, cobras e insetos voadores, por exemplo). Não se tem medo de automóveis, é coisa muito nova para o superego ter absorvido.
Alimentado por nossa criação, ele pode ser um crítico exigente e severo, sempre a nos julgar mal e a nos ameaçar com a imaginação das piores coisas. Nessa hora, entram os mecanismos de defesa, para abafá-lo.
Vivemos um equilíbrio delicado: se o superego passa do ponto (como quando pensamos em problemas no escuro da noite insone ou em situações de estresse), somos capazes de adoecer de depressão, de vícios ou de loucura (mecanismos de defesa graves).
Se esses mecanismos passam do ponto, podemos desconsiderar perigos e acabar como os judeus de Auschwitz.
A presidente falando na TV me apavorou. Além de vender uma negação absurda (só pensam em racionamento os inimigos do Brasil), ela dividiu o país em dois grupos: "nós" (patriotas e apoiadores do governo/país) e "eles" (pessimistas, críticos do governo/país, que ela parece pensar como uma só coisa).
Uma espécie de "Brasil, ame-o ou deixe-o". Médici não faria melhor.
Sou um "deles". Em que grupo de judeus estarei eu? Acho que no segundo. "Ainda somos uma democracia". "Mas, e a Venezuela, que essa turma adora?". "Olha o Supremo!". "Olha o Congresso...". "Mas tem a oposição". "Que oposição?".
Está bem, vou ficando, fazendo o que posso, mas de olho!"
FRANCISCO DAUDT
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