"Disse um dia em entrevista televisiva que, sempre que tinha dúvidas sobre um assunto sobre o qual precisava escrever, telefonava imediatamente à minha avó. Ela resolvia qualquer bloqueio criativo.
A entrevistadora entendeu a frase como "boutade" -a atitude típica de um "dândi", para citar uma crítica altamente elogiosa que um editorialista do "Valor Econômico" atirou sobre mim.
Mas não era "boutade" (nem eu, "hélas!", sou o sr. Beau Brummel). Contaminado por matérias mil e deformado pelo chicote da universidade, que às vezes atrapalha mais do que ajuda, a minha avó tinha aquela "disposição conservadora" de que falava Michael Oakeshott. Uma disposição que era natural, sem carimbo acadêmico, feita de prudência, ceticismo, humor. E de um arrasador bom senso perante os dilemas da vida.
Razão tinha um autor célebre quando afirmava que entregaria mais depressa os destinos de uma nação ao primeiro nome que encontrasse na lista telefônica do que ao departamento de humanidades da Universidade Harvard. A minha avó era o nome da minha lista telefônica. Metafórica e literalmente.
Não, para ela os homens não tinham nascido livres nem se encontravam aprisionados em toda parte. Mas a minha avó também não subscrevia a fantasia contrária: os homens não eram matéria irremediavelmente corrompida.
Da espécie Homo sapiens, devemos esperar grandes coisas e miseráveis coisas. Uma vez mais, prudência e ceticismo.
São incontáveis as crônicas em que plagiei a minha avó -os únicos plágios premeditados e conscientes que cometi na vida, sempre com uma mistura de prazer e culpa que nunca me abandonava.
A responsabilidade era inteiramente dela: aos sete anos, ofereceu-me a primeira máquina de escrever -uma monstruosidade metálica e cor de laranja, trazida de Andorra, e que ainda existe (e funciona) no escritório de casa.
Recebi o presente próximo da apoplexia e, nos dias seguintes, ela desafiava-me a escrever-lhe cartas imaginárias, algures no ano 2020. Para lhe contar as minhas viagens pelo mundo.
Isso, claro, até iniciar as viagens reais. Com ela ou por causa dela. Aos nove anos, sei lá como ou por que, comecei a alimentar uma paixão séria pelo Egito Antigo. Eram as pirâmides, os faraós, as múmias e, melhor ainda, o próprio processo de mumificação (aula breve para principiantes: os miolos são removidos pelas narinas).
A paixão era de tal ordem que só se curou quando, no ano seguinte, ela me levou ao Egito real. Pela sua mão, acampei no museu do Cairo; e nas pirâmides de Gizé; e nas ruínas de Luxor e Alexandria.
E, depois do Egito, por que não atravessar o deserto e chegar a Jerusalém?
Dito e feito: a primeira vez que estive em Israel também foi com ela. Tudo com narração personalizada sobre as desventuras dos judeus antigos, que ela lera na Bíblia, sem esquecer os modernos, que ela acolhera em casa durante a Segunda Guerra. Como católica que era.
E foi sempre com ela, nessa fase de encantamentos que costuma acompanhar o fim da infância e os primórdios de toda adolescência, que conheci as cidades restantes que me ficaram para a vida. Paris. Roma. Veneza. E, claro, Londres, sempre Londres, talvez a sua maior herança.
Porque vivemos um tempo de heranças -não as materiais, que são parcas e finitas. Mas as outras. As intangíveis.
E hoje, fazendo uma pausa nas loucuras do mundo, dedico esta crônica à minha irmã, que a partir de agora continuará o seu nome. Para que tu, querida Ester, possas ter as virtudes da tua homônima. Como eu sei que tens. Vejo-as quando te vejo: o mesmo porte elegante; a mesma coragem no momento das quedas e ascensões; e essa raríssima arte de saber equilibrar a inteligência com a simples bondade humana. Não te rias. Porque até teu riso tem direitos autorais.
Para o respeitável leitor, prometo que as loucuras do mundo voltam na próxima semana. Mas não posso prometer mais que isso. Porque, daqui para a frente, quando tiver dúvidas sobre os assuntos do momento, a minha lista telefônica estará vazia".
JOÃO PEREIRA COUTINHO
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